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O lado esquerdo

Por Vilma Arêas

4 de setembro de 2022
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Heloisa Jahn morreu em 27 de junho desse ano (2022), mas ainda sinto dificuldade em medir o tempo que nos separa. Ora parece que séculos transcorreram, ora que foi ontem. Difícil absorver o que aconteceu. Portanto ela ainda flutua em minha lembrança, perto de mim e ao mesmo tempo inalcançável. É difícil falar dela.

Helô foi uma mulher do meu lado esquerdo, isto é, uma amiga do coração. E nisso não estou sozinha. Basta conferirmos todos os depoimentos dos que a conheceram. Percebemos facilmente que nenhum possui o desagradável ranço das palavras oficiais. São perfeitamente nítidas a surpresa da perda e a dor de sermos atingidos pela bala perdida do acaso.

Talvez Samuel Titan tenha sido o único a perceber que algo não ia bem com ela. A partir de certo momento começou a me dizer, preocupado: “Olho na Helô, ela anda tristíssima”. Surpresa, procurei me aproximar um pouco mais, mas não o suficiente e nada muito concreto. No fundo não acreditava que algo de mal pudesse atingir alguém tão junto de nós, tão verdadeiramente junto de nós.

Todos retomam comovidos lembranças de Heloisa Jahn, sua competência, principalmente no campo da tradução. Era assim que ela ganhava a vida nos últimos tempos, de forma dificultosa, pelo pouco que julgam essa difícil e incompreendida tarefa. O tradutor Sérgio Karam lembrou que, em mais de quarenta anos de trabalho, Helô nos deixou mais de cem livros traduzidos, do inglês, francês, espanhol, sueco e dinamarquês.

À competência profissional acrescentamos sua sensibilidade na aceitação do outro, no companheirismo e solidariedade a toda prova. (Um mendigo que surgiu no velório, dizendo que ela lhe dava comida e lavava sua roupa, só impressionou quem não conhecia bem Heloisa. Ela absolutamente não habitava os aspectos convencionais da vida a seu redor, mas tentava resolver a paradoxal conjunção de suavidade e resistência, incluindo-se aí a política, o que a obrigou, muito jovem, a sair do país.)

Helô também atuou de maneira rara enquanto editora. Costumava telefonar diante de qualquer dúvida ou engano. Às vezes me perguntava: “Tem certeza que você quer mesmo dizer isso?”. Pois não se sentia à vontade para alterar qualquer texto à sua frente. Isto se chama respeito e consciência profissional, seu comprometimento em todos os campos em que atuou.

Paulo Henriques Britto afirmou que no final dos anos 1970, num concurso de tradução organizado por ele na PUC/Rio, ela ganhou o primeiro lugar. Tratava-se da tradução de um poema de T.S. Eliot. À época Helô cursava filosofia na mesma universidade. A partir de então ficaram muito amigos. Esse é o resultado de habitar sempre nosso lado esquerdo. Por seu turno, o jornalista Walter Porto lembra sua declaração de que “gostava do desafio de decifrar palavras e códigos”, o que nos conduz a sua sensibilidade de poeta, observada nos poemas que publicou, ao lado de outros inéditos. Quando eu a aconselhava a publicá-los, ela retrucava que não estavam prontos e que não podia se dedicar ao exercício da poesia, atividade vagarosa, que toma tempo. Essas palavras nos levam a pensar na consciência da Helô em relação à literatura, o que também não é comum nos dias de hoje.

Eu a vejo sempre sorrindo ao abrir a porta de casa para mim, enquanto controlava o gato que tentava escapar; ou caminhando em minha direção, como aconteceu na primeira vez que a encontrei, na antiga editora Brasiliense em 1991, quando ela editava um livro meu. A partir de então nosso convívio foi sempre atravessado por sua imaginação, brandura, carinho – mas também por seu sentido de humor. Por exemplo, ao me ouvir dizer que gostava muito de bichos, mas que detestava tomar conta deles, a Helô começou a me presentear com sapos e corujas, coloridos e minúsculos, borboletas de louça ou metal, dizendo sempre com um risinho maroto: “Desses você não precisa cuidar”.

Pois bem, estão todos bem guardados, e achei graça ao descobrir há pouco tempo uma tartaruga colorida, quase invisível, ao lado de um brinquedo também mínimo, sobre quatro minúsculas rodas. Estavam dentro de um baú de metal, que eu trouxera da Espanha e que cabe, para rimar com o resto, na palma de minha mão. Talvez eu tenha pensado que ali não se perderiam. E talvez, brincando seriamente com tudo isso, ela tenha querido transformar minha impaciência em cuidado, em pensamento (pois não é verdade que “cuidar” vem do verbo latino “cogitare”?).

Cabem também no mesmo gesto os inúmeros livros com que me presenteou, muitos sem dedicatória, substituída por mim com a frase “dado por Helô”. Assim aconteceu com os poemas da notável Wislawa Szymborska. Sempre que o livro estava à mão comentávamos os versos, reafirmando o quanto gostávamos do poema em que Szymborska confessa preferir o sexto ato das tragédias. Ali, os que morreram reviviam, a vítima lançava um olhar doce ao carrasco e o rebelde caminhava sem rancor ao lado do tirano.

O problema é que tragédias têm cinco atos, o sexto não existe e a poeta sutilmente suspeita da verdade, quando sente, depois de todas as maravilhas, o horror de uma mão invisível apertando-lhe a garganta.

Nunca disse, mas hoje me ocorreu dizer, só para continuar essa imaginária conversa: “Pois é, Helô, é fantasia e ao mesmo tempo não, pois o poema aí está, vivo e verdadeiro. Assim como você está viva e verdadeira, nos aquecendo neste frio mês de agosto”.

Mas nesse momento, como aconteceu? Empurrada pelo poema, abandono o sexto ato e caio na realidade. Sinto que a mesma terceira mão invisível não esquece seu dever – e me aperta a garganta.


Vilma Arêas é professora titular de literatura brasileira pela Unicamp, escritora e ensaísta. Trabalhou e pesquisou em universidades de Portugal, Espanha e Estados Unidos. É autora de livros premiados de ficção – Aos trancos e relâmpagos, Vento sul, Trouxa frouxa, Um beijo por mês – e de ensaios – Na tapera de Santa Cruz, Clarice Lispector com a ponta dos dedos: a trama do tempo – entre outros.

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