As coisas que perdemos no fogo

As coisas que perdemos no fogo

Mariana Enriquez

TERROR COTIDIANO NA LITERATURA DE MARIANA ENRIQUEZ

Esqueletos, fantasmas, casas assombradas, rituais macabros e assassinatos com requinte de crueldade. “As coisas que perdemos no fogo”, de Mariana Enriquez, tem, sim, alguns traços clássicos da literatura de terror. Mas o que parece tornar seus contos ainda mais perturbadores não é o horror do sobrenatural, e sim o horror cotidiano. Das 12 narrativas curtas do livro, emergem conflitos contemporâneos próprios de grandes cidades latino-americanas, como desigualdade social, violência policial e terrorismo de Estado, feminicídio, medo do outro. 

Enriquez transpassa as fronteiras da Buenos Aires de cartão-postal e volta seu olhar para um lado mais sombrio da cidade e do país: rodovias desertas e centros de tortura construídos na ditadura, rios contaminados, favelas e zonas violentas abandonadas pelo governo.

Em “O menino sujo”, por exemplo, a moradora de uma mansão em Constitución, bairro antes abastado e agora degradado, se envolve em uma trama assustadora ligada a um menino em situação de rua, sua mãe viciada em crack e santos populares. Já em “Hospedaria”, duas adolescentes que tentam pregar uma peça na dona de uma pensão localizada em uma antiga escola de treinamento para policiais na ditadura são assombradas por ruídos de fantasmas. Em “O quintal do vizinho”, uma assistente social atormentada por um caso de negligência com duas crianças descobre um menino nu acorrentado na casa ao lado da sua. No conto que dá nome ao livro, mulheres ateiam fogo ao próprio corpo em um protesto coletivo contra o machismo. “Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes”, defende uma das incendiárias.

Oitavo livro de Mariana Enriquez – e o primeiro publicado aqui –, “As coisas que perdemos no fogo” (2016) foi traduzido para mais de 20 idiomas, projetando-a internacionalmente como um dos grandes nomes da literatura latino-americana contemporânea. Nascida em 1973, em Lanús, subúrbio de Bueno Aires, a jornalista e escritora lançou, entre outros títulos, “Este é o mar” (2019) e “Nuestra parte de noche” (2019), vencedor do Prêmio Herralde de Novela 2019 que sai em breve no Brasil.


“Não quero escutar as histórias de terror do bairro, que são todas inverossímeis e críveis ao mesmo tempo e que não me dão medo, pelo menos de dia.” 

“Não quero escutar as histórias de terror do bairro, que são todas inverossímeis e críveis ao mesmo tempo e que não me dão medo, pelo menos de dia. À noite, quando tento terminar trabalhos atrasados e fico acordada em silêncio para me concentrar, às vezes me lembro das histórias contadas em voz baixa. E me certifico de que a porta da rua esteja bem trancada, assim como a da sacada. E às vezes fico olhando a rua, sobretudo a esquina onde dormem o menino sujo e sua mãe, totalmente quietos, como mortos sem nome.

Uma noite, depois do jantar, a campainha tocou. Estranho: quase ninguém me visita a essa hora. […] Quando olhei pela janela para ver quem era — ninguém abre a porta diretamente neste bairro se a campainha toca por volta da meia-noite —, vi que ali estava o menino sujo. Corri para buscar as chaves e o deixei entrar. Tinha chorado, dava para notar pelos sulcos claros que as lágrimas haviam marcado em sua cara encardida. […]

— O que aconteceu com você? — perguntei.

— Minha mãe não voltou — disse ele.

Tinha a voz menos áspera, mas não soava como um menino de cinco anos.

— Te deixou sozinho?

Sim, com a cabeça.

— Você está com medo?

— Estou com fome — respondeu. Com medo também, mas já estava suficientemente endurecido para não admitir isso diante de um estranho que, além do mais, tinha casa, uma casa linda e enorme, bem na frente da sua intempérie. […]

Comeu fitando-me nos olhos, muito sério, com tranquilidade. Tinha fome, mas não estava faminto.

— Aonde sua mãe foi?

Deu de ombros.

— Ela costuma sair muito?

Outra vez ele deu de ombros. Tive vontade de sacudi-lo e, em seguida, me envergonhei. Ele precisava de ajuda; eu não tinha por que saciar minha curiosidade mórbida. E, mesmo assim, algo no silêncio dele me irritava. Queria que fosse um menino amável e encantador, não aquele menino áspero e sujo que comia o arroz com frango lentamente, saboreando cada garfada, e arrotava depois de terminar seu copo de Coca-Cola, que bebeu com avidez e pediu mais.”

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Trecho do conto “O menino sujo”, do livro “As coisas que perdemos no fogo”, de Mariana Enriquez; em tradução de José Geraldo Couto para a Intrínseca.


ANTÔNIO XERXENESKY COMENTA “AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO”

“O nosso imaginário é muito colonizado pelos filmes de terror a que a gente assiste. E Mariana Enriquez rompe com essa colonização barata, consegue realmente fazer um terror à moda latino-americana.”

Antônio Xerxenesky aponta o que, em sua opinião, faz da argentina Mariana Enriquez uma das melhores escritoras em atividade. “Ela subverte, recria e escancara as contradições que existem na América Latina do capitalismo tardio. Uma América Latina de imensas disparidades entre ricos e pobres e onde um lado vai enxergar o outro com um medo quase irracional, um medo que a gente costuma dirigir a criaturas mitológicas”, observa o também escritor, ao comentar a influência de H.P. Lovecraft no conto “Sob a água negra”, seu favorito de “As coisas que perdemos no fogo”. “Talvez alguns leitores mais sensíveis vão dizer ‘isto não é para mim’, mas quem tiver coragem de ler a Mariana Enriquez não vai se arrepender”, conclui.

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Antônio Xerxenesky (@xerxenesky) é doutor em teoria literária pela USP, tradutor, editor e escritor. Publicou “Areia nos dentes” (2010), “F” (2014) – finalista do Prêmio São Paulo e indicado ao Prix Médicis de melhor romance estrangeiro na França – e “As perguntas” (2017).


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