O crime do Cais Valongo

O crime do Cais Valongo

Eliana Alves Cruz

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O INFERNO É AQUI: O RIO DE JANEIRO DO SÉC. XIX

O assassinato de um comerciante malquisto por muita gente no Rio de Janeiro do início do século XIX – esse é o ponto de partida de “O crime do Cais do Valongo”, de Eliana Alves Cruz. Com uma narrativa que valoriza a memória e as tradições africanas, o romance semifinalista do Prêmio Oceanos de 2019 reconstitui, através de apurada pesquisa, as relações entre senhores e escravizados a partir do ponto de vista dos negros sequestrados da África, seviciados e transformados em mercadorias no Brasil.

Principal porta de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Cais do Valongo é símbolo da dor de milhões. Segundo estimativas, de 500 mil a 1 milhão de escravizados desembarcaram ali entre 1811 e 1831. Localizado na região denominada Pequena África, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, o sítio arqueológico foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017.

É nesse cenário que se desenrola a trama de “O crime do Cais do Valongo”. Jovem letrada, Muana é a principal narradora da história. Junto a Roza e Marianno, também escravizados pelo comerciante, ela é apontada como suspeita do crime. À medida que se conhece a sua história – do sequestro em Moçambique à chegada ao Brasil –, conhecem-se também os elementos para elucidação do crime, ou dos vários crimes.

Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora. Seu primeiro livro é “Água de barrela” (2016), que ganhou, em 2015, o Prêmio Oliveira Silveira, concedido pela Fundação Palmares/MinC. É autora ainda de “Nada digo de ti, que em ti não veja” (2020), sua mais recente incursão ao romance histórico, e de “A copa frondosa da árvore” (2019), voltado ao público infantil.


“É possível sepultar para sempre passado tão tenebroso?”

“O outrora Cais do Valongo está sendo reformado para receber […] a noiva do imperador menino Dom Pedro II.

Olhei para o antigo píer e os vi. Muana e um jovem altíssimo e belíssimo, certamente era o seu amor Umpulla… Eles conduziam uma multidão que parecia fugir de assassinos, desesperada por socorro e que tomava todo o espaço do cais para sumir no ar, como água evaporada no mormaço, como seres etéreos que sublimam e partem. Milhares de homens, mulheres, crianças. Muitas crianças! Nosso delito a ser purgado é contra os miúdos, contra a infância. Como pesa, meu Deus, esse baú de Muana! Como pesa! Mas por quais diabos estou clamando por Ele? Eu não acredito em Deus! E também não creio no diabo, embora ele pareça tão mais próximo de mim, meu Deus! […].

Eu não conseguia ver a nova plataforma que surgia, com suas pedras polidas, regulares e meticulosamente montadas. O piso que consideravam digno para uma rainha apoiar seus delicados pés. Totalmente diferente daquele de pedras redondas e irregulares, que ia ficando soterrado. É possível sepultar para sempre passado tão tenebroso? Eu não enxergava o cais onde cedo ou tarde tocaria alguma garota assustada vinda de longe, com um séquito de mucamas, lacaios, ministros… […] Eu via apenas aquele píer de pedras ‘pés de moleque’ onde tantas vezes testemunhei a chegada dos milhares que vinham de muito longe e ali desciam, desfilando excrementos, feridas e solidão debaixo do nosso inclemente astro rei. Nunca deixei de admirar – e por que não? – invejar incontáveis homens e mulheres que conseguiam demonstrar certo garbo e altivez, mesmo em tão deploráveis condições. E eu, nascido livre, com minha tez negra clara, lembrando apenas de meu pai português e raramente de minha mãe… E eu, tão miseravelmente pequeno perto deles, pois eram em sua maioria todos tão jovens… tão jovens… Este sim foi o verdadeiro crime do Cais do Valongo. Levará algumas eras para que seja pago.”

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Trecho de “O crime do Cais do Valongo”, romance de Eliana Alves Cruz publicado pela Malê.


ELIANA ALVES CRUZ COMENTA “O CRIME DO CAIS DO VALONGO”

“É uma descida profunda aos infernos do que está na nossa formação.”

A autora de “O crime do Cais do Valongo” conta, em depoimento para a Megafauna, como a extensa pesquisa que deu origem a seu romance foi também um processo de descortino do Rio de Janeiro e do Brasil. “O que está por trás dessa imagem da cidade linda e maravilhosa, o que está por trás da história desse país que vende uma imagem tão democrática em termos de relações humanas?”

Maior porto de entrada de escravizados na América Latina, o Cais do Valongo recebeu de 500 mil a 1 milhão de africanos entre 1811 e 1831. Durante as obras de revitalização da zona portuária da cidade, em 2011, descobriu-se um sítio arqueológico de onde (re)emergiram histórias de um período doloroso da história do país.


A jornalista e escritora carioca se interessou particularmente pelo cais como local de encruzilhada de gente das mais diversas origens e culturas. “Nós temos na cabeça um mito de que essas pessoas não trouxeram ciência, não trouxeram filosofia, não trouxeram conhecimento. Eram braço, perna, corpo. Não, não, não!”, comenta Eliana. Assim nasceram personagens que desafiam estereótipos, como a moçambicana Muana, escravizada letrada e principal suspeita do assassinato referido no título do livro. “A Muana é ancestralidade, essa busca eterna por se manter lúcida para não se perder do que ela realmente acredita, de sua essência. […] Criar essa personagem, que fica o tempo todo tentando não esquecer quem ela é, é falar que precisamos resgatar esse passado, esse pertencimento”, observa. “Literatura e arte é isso, é brincar com as possibilidades, brincar com diferentes finais de mundo.”

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Eliana Alves Cruz (@elialvescruz) é jornalista e escritora. Publicou livros como “Água de barrela” (2016) e “O crime do Cais do Valongo” (2018), título da semana no nosso projeto Temporada no Inferno.


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