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“Como eu posso esquecer uma coisa que nem sei o que é?”

Por Ana Kiffer

21 de março de 2024
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Sobre o que não falamos (Editora 34), de Ana Cristina Braga Martes, é, antes mesmo de adentrarmos a leitura do romance, um título que atravessa o leitor. Convidando-o, ou mesmo arrastando-o para as paragens que guardam os não ditos, os entreditos e os interditos da vida de todos e de cada um de nós. É um título-convite, que se manterá ao longo de toda a obra, na delicadeza da voz dessa narradora, entre a criança e a jovem adolescente, que busca saber do que lhe foi ocultado, do que o mundo ao seu redor quer ao mesmo tempo revelar e esconder. Esse percurso interrogativo, cheio de meandros silenciosos e encontros a meia-voz, ressoa no leitor, fazendo com que o título volte, volte, volte. Nos chamando a escrever a nossa própria lista, breve ou longa, de tudo “sobre o que não falamos”. A literatura, se tem a função de convocar o seu leitor, aqui se cumpre desde a primeira frase: o título do romance.

A autora dá as mãos a sua narradora, que, em estado ainda frágil e doente, nos conta dos silêncios e ocultamentos que impedem uma vida de ser vivida. Lado a lado elas oferecem ao leitor os meandros do que foi silenciado. Ao mesmo tempo que chamam por eles: venham comigo, vamos juntos lá atrás. Afinal, essa história é de todos nós e não apenas da “bela Clara preta”. Voltemos juntos para perto dos muros que carregam escritas sobre eles as verdades repetidamente negadas: “Homens fardados me deixavam aflita, que nem as palavras que apareciam escritas no muro e que eu não conseguia entender”. Hoje nós entendemos, ou ao menos deveríamos buscar entender, o que portam os muros nos quais se escreve o desejo de excluir, de matar, de segregar os que não se enquadram nos regimes totalitários que sem cessar voltam, e voltam e voltam. A cada volta marcam de um jeito diferente a carne dos povos e suas histórias.

No caso da “bela Clara preta” confluem os dois maiores “muros” que ainda aterrorizam o Brasil: o racismo e o totalitarismo. O holocausto da escravidão (expressão de Édouard Glissant) e a ditadura civil-militar brasileira. Mas nesse romance esses termos não precisam sequer ser evocados. Eles aparecem nos entreditos, na busca da narradora por conhecer a sua origem, a sua história, o pai que ela nunca soube quem era, a mãe que ela nunca soube como morreu. Filha direta desses dois maiores fantasmas do Brasil, Clara é uma adolescente que sem saber traz no corpo o peso de sua história: doem os seus pés ao andar, e o reumatismo figura uma alma velha num corpo de menina.

Lá na vila antiga onde moravam os seus avós vamos com Clara lembrar da professora mais querida que tivemos na escola, assim como da amiga mais cruel. Vamos também poder dizer o que nunca se pôde falar: “gostar de ficar doente era um segredo meu”, ou seu, ou nosso. Mas o segredo, quando chega ao limite da rasura da história, de seu apagamento e da impossibilidade de acessá-la, cria um jogo perigoso entre o corpo e a letra, na busca por uma memória que está ali, mas não pode falar: “um jogo da memória sem memória, porque eu não sabia quase nada sobre a minha mãe e menos ainda sobre a família dela, a não ser que eram filhos de imigrantes, dois ou três parentes no Brasil, em algum lugar longe da Vila. Da família do meu pai eu não conhecia ninguém, nem tinha ideia de onde moravam, de onde tinham vindo, não sabia nada, nada”. Entre o corpo de Clara e o corpo da cidade algumas pistas se deixam ler: “Vila de operário, vila de imigrante, preto não tinha, e indígena só no livro da escola”.

Sobre o que não falamos é um romance magistral sobre o caminho que ainda precisamos percorrer: aprender a lembrar daquilo que não se deixou criar memória. “Como eu posso esquecer uma coisa que nem sei o que é?” Com essa pergunta a personagem-narradora abre a caixa de Pandora do Brasil: tudo o que enterramos sobre nós mesmos, o modo como nos negamos a lidar com os nossos maiores conflitos, a forma disjuntiva e silenciosa sobre a qual desliza o apartheid racista do Brasil. O que nunca ouvimos das crianças que viveram a ditadura civil-militar brasileira, tenham ou não tido os pais presos, mortos ou desaparecidos. Fomos todos atingidos pelo mesmo céu, criamos medos que ainda hoje desconhecemos, e que ficam ainda escondidos atrás dos muros. O problema é que os muros continuam de pé.

Muitos falam que a literatura brasileira já escreveu demasiado sobre esse “período”; o romance de Ana Cristina Braga Martes mostra que não. Eu mesma não faço outra coisa senão dizer e insistir: nós ainda nem começamos a desenterrar juntos os cadáveres da nossa história. As suas destruições invisíveis, feitas de marcas indeléveis.

Ana Kiffer é escritora. Seu primeiro romance, O canto dela (Patuá, 2021), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Pesquisadora e professora na PUC-Rio, alia corpo, memória e política ao que pensa e faz.

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