Buscar
0

CONVERSAS DILUVIOSAS, AVÔ BEBEDOLA E SANDES DE CHOURIÇÃO, ENTRE OUTRAS COISAS BEM MAIS GRAVES

Por Heloisa Jahn

15 de maio de 2022
Compartilhar

O primeiro prazer, ao ler Ana de Amsterdam, é o português. Tem luz serôdia, os meninos ensaiam saltos de trampolim sobre o plinto, a cadeira está na beira do estendal, a menina toma o xarope alarvemente! E tem mesóclise!

O livro foi construído a partir do blog da portuguesa Ana Cássia Rebelo, com seleção e organização do crítico João Pedro George, que conta, no prefácio, que o blog surgiu como recurso de sobrevivência, lugar de respirar e se expressar quando o cotidiano repetitivo, o trabalho pouco estimulante na “rua mais feia da cidade” e um casamento tóxico ficaram intoleráveis. “Assim que a casa sossega, ultrapassada a barreira dos afazeres domésticos, livre dos protestos e da tirania dos filhos, Ana Cássia Rebelo senta-se em frente do computador e escreve.” Acompanhamos aqui, de 29/06/2006 a 30/10/2014, o que ela vive e pensa, e podemos avaliar a força organizadora e pacificadora da escrita.

Quando inaugura o blog, Ana tem 34 anos, dois filhos e um marido; logo nasce o terceiro filho e vai-se o marido. Como num diário não diário, ela narra cenas do cotidiano, relembra fatos de sua vida, filosofa, se confessa e milita em nome das mulheres. Assina o blog como Ana de Amsterdam, nome tirado da música de Chico Buarque que diz “sou Ana do Oriente, Ocidente…”. A escritora nasceu em Moçambique, de pai indiano de Goa e mãe portuguesa, e aos cinco anos, com o fim do salazarismo, foi com a família para Portugal. É, portanto, uma Ana de três continentes – a Ásia de Goa, a África de Moçambique, a Europa de Portugal. Entre os três, unidos pela rede do idioma, movem-se parentes, memórias e experiências. O livro foi publicado no Brasil pela Biblioteca Azul, da Globo, em 2016, pouco depois do lançamento em Portugal. 

A primeira frase, “É hoje a consulta com o novo psiquiatra”, apresenta o tema da depressão – um estraçalhar-se incessante. A escrita franca é uma topografia da tortura de viver com a obsessão do suicídio e fantasias de aniquilação, na vigília incessante de si. “Espalhei o creme e deixei-me ficar a olhar para o espelho. Dei com as minhas imperfeições: os pelos do buço, as sobrancelhas hirsutas, os poros dilatados na testa e no nariz, a pele cansada do sol, envelhecida, o canino inferior do lado direito torto e pontilhado de manchas de tártaro, as narinas dilatadas.” O olhar de quem não tem apreço pelo que vê.

A escrita de Ana de Amsterdam é gloriosamente “de mulher”. Com brio. O tom direto, as palavras despudoradas, o recurso à ironia e mesmo ao sarcasmo, o azedume, dão ao texto sua força magnética. Um feminismo que não hesita em se tingir de rancor para com os homens. “Fiz a aprendizagem da minha condição e, com passividade absoluta, acatei leis antigas. Aprendi o meu papel no casamento e na cama. Fui uma deusa morta, não uma mulher viva. […] Não há maior tragédia na vida de uma mulher do que a renúncia. Antes o desespero e a loucura.”

A frigidez, mencionada desde o início, aparece ligada ao sentimento de repulsa ao papel imposto à mulher pelos costumes. Contudo, não significa ausência de desejo . Ana expõe uma sexualidade exasperada; descreve sem meias-palavras seu gosto pela masturbação frequente, e apresenta uma teoria provocadora sobre o desejo e o “uso” dos homens. Para ela, “Não fora o desejo e a insatisfação, seria uma mulher moderadamente feliz.”

Em contrapartida, os filhos são um amor indiscutível: a eles tudo será dado, deles tudo será recebido. Mesmo assim, diante da sucessão dos dias que lembram produtos na estante do supermercado, um equivalente ao outro, eles não têm como ser redentores: “Volto a aborrecer-me com o recato da vida doméstica, a nausear-me com a sobriedade dos dias iguais. […] Amo os meus filhos. Com fúria, certo desespero. Mas não me basta o que têm para me oferecer.” 

Há mais, porém. “Eu sou mestiça”, diz Ana, e o livro ganha com isso. Entremeadas às questões centrais, surgem cenas familiares em Portugal, Goa e mesmo, brevemente, Moçambique. Nomes de lugares funcionam como evocação de ecos internos que não chegam a se definir como pensamentos, mas se materializam num rico inventário de comidas lusas e indianas: chacuti de galinha, azevias… E de plantas: malvaíscos, zínias, cristas-de-galo… Há pequenos contos – histórias de mulheres – e, à maneira de crônicas, cenas do cotidiano desnudadas pelo olhar agudo da escritora.

© Bel Pedrosa

Heloisa Jahn (1947-2022) foi editora e tradutora literária. Trabalhou na Brasiliense, na Companhia das Letras e na Cosac Naify. Editou cerca de 80 autores brasileiros, sobretudo ficcionistas e poetas, e traduziu cerca de cem títulos para todas as idades.

Livros relacionados


Outros textos do autor

Sempre falta uma palavra

9 de junho de 2022
Ver mais

O desalento de Tonico, sineiro

10 de abril de 2022
Ver mais

Bichos e plantas, recatos e malícias

13 de março de 2022
Ver mais

Que língua é essa, Vilma Arêas?

6 de fevereiro de 2022
Ver mais

O grande combate entre a ordem e a desordem

12 de dezembro de 2021
Ver mais

Samba-canção na cozinha

12 de novembro de 2021
Ver mais