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A persona e o texto do Mago, do Santo e da Esfinge

Por Eduardo Dimitrov

7 de março de 2024
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As análises sociológicas são tidas, por alguns críticos, como incapazes de adentrar as especificidades de obras literárias. Sociólogos estariam habilitados apenas a ler indicadores sociais, não literatura. Em suas tentativas de interpretar poemas, contos e romances, depreenderiam apenas reflexos do social, transformando-os em documentação ilustrativa para compreender determinado contexto, ou encontrariam nesse contexto as condicionantes que, de forma mecânica, conduziriam, a despeito da inventividade dos autores, aos aspectos formais e estéticos das obras.

Essas acusações estão longe de poder ser direcionadas ao livro do sociólogo Fernando Pinheiro O Mago, o Santo, a Esfinge (Todavia), composto por três ensaios relativamente autônomos – sobre, a saber, Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector –, alinhavados, porém, por uma indagação e uma embocadura analítica de tal maneira articuladas que a leitura de cada um deles amplia a inteligibilidade dos demais. Coelho, Bandeira e Lispector são tomados como “tipos”, casos exemplares de equacionamento, e essa é a questão central do livro: a relação estabelecida entre as “estratégias de escritura” e as “estratégias de autor”.

Pinheiro utiliza-se sobretudo das ferramentas derivadas do interacionismo simbólico, do canadense Erving Goffman, e da sociologia de Pierre Bourdieu, com seus desdobramentos desenvolvidos por Gisèle Sapiro e Pascale Casanova, sem que, contudo, o jargão sociológico aprisione sua escrita e afaste o leitor pouco familiarizado com a disciplina. Com uma linguagem fluida e acessível, persegue como a persona de autor, construída em aparições públicas (falas, imagens, entrevistas, artigos de imprensa etc.), se espraia para o texto literário, seja “por ação mais ou menos consciente do autor, seja pela assunção dessa figura por seu público, que interfere no modo como se lê – e, antes disso, na expectativa sobre o que será lido”.

Pinheiro analisa, desse modo, como cada autor tratado lidou, mais uma vez, de forma mais ou menos consciente, com suas encarnações de uma “figura de autor” de modo a construir personagens de si, indissociáveis dos textos literários e das interpretações feitas pelo público, pelos pares e pela crítica especializada.

A análise aprofundada e a comparação da maneira como Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector equacionaram essa balança entre, por um lado, um projeto literário, concernente à “produção de sentido no gesto de escrever, ao texto enquanto trabalho artístico com a linguagem”, e, por outro, sua persona pública de escritor tornam o livro revelador do campo literário brasileiro e despertam para se pensar não apenas os três autores abordados, mas também o modo como outros lidaram com as mesmas questões.

Se reconstruir as “estratégias de autor” poderia gerar a acusação de uma sociologia externalista, Fernando Pinheiro não se esquiva de olhar para os textos literários. Como sociólogo, não adere de antemão ao efeito de encantamento justamente para compreender como tal efeito é, ou não, produzido. Persegue, nos textos, tanto as “estratégias de escrita” dos autores quanto a maneira como tais escritos foram lidos pela fortuna crítica, muitas vezes informadas e já predispostas a juízos em função da persona do autor.

Na análise sobre Paulo Coelho, Pinheiro reconhece que o uso de fábulas, desterritorializadas e atemporais, o anti-intelectualismo e a divulgação de uma sabedoria prática, por exemplo, contribuem para compreender o sucesso mundial e, ao mesmo tempo, ampliam as dificuldades encontradas para seu reconhecimento enquanto autor nacional. Reconstruindo a persona performatizada por Paulo Coelho, torna explícitos os casuísmos, a tacanhice e o conservadorismo da crítica nacional que, para desvalorizar os escritos do Mago e proteger a literatura de impurezas, levaria em conta apenas, supostamente, obras nas quais o trabalho com a linguagem tem centralidade, algo distinto ao ocorrido na recepção francesa e americana: comparação provocante e reveladora.

O Santo logrou a posição diametralmente oposta à do Mago. Analisando Itinerário de Pasárgada, tido como autobiográfico, Pinheiro mostra como Bandeira criou uma persona de poeta imaculado, silenciando quaisquer liames com a concretude do mundo, como se sua dedicação e existência estivessem exclusivamente comprometidas com o exercício da linguagem pura. Algo pretendido, também, por Lispector, contudo, que ocupando uma posição estruturalmente mais frágil, cria, em seus textos literários e paraliterários, uma persona oscilante entre a Esfinge a ser decifrada e a mãe, chefe de família, dona de casa imersa em problemas comezinhos da vida ordinária.

Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector equilibraram a balança entre estratégia de autor e estratégia de escritura, cada um a seu modo, em função de trunfos, percepções, apostas… Cada combinação, com rendimentos específicos, revela partes do funcionamento do campo literário brasileiro. É nesse sentido que os três ensaios de Fernando Pinheiro se completam e podem suscitar no leitor uma reorganização de boa parte de suas referências literárias. Provavelmente, posicionando alguns como aprendizes de magos, outros como aspirantes a santos e uma parte significativa como esfinges a serem decifradas.

Eduardo Dimitrov é professor do departamento de sociologia da Universidade de Brasília. Doutor em Antropologia Social pela USP, é autor do livro Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano (Alameda, 2022).

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