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Heloisa Jahn

Por Janice Theodoro da Silva

7 de agosto de 2022
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A editora e tradutora Heloisa Jahn morreu no dia 27 de junho, aos 74 anos. Traduziu do inglês, francês, espanhol, dinamarquês e sueco. Foram mais de cem livros, de Julio Cortázar, Louise Glück (Nobel de literatura), Jorge Luis Borges, Hans Christian Andersen, George Orwell, Ricardo Piglia, Mario Vargas Llosa e muitos outros autores menos conhecidos, mas igualmente sensíveis. 

Heloisa foi para mim uma amiga secreta, uma espécie de Penélope bordadeira de palavras, de linha e agulha. Explico a origem do segredo.

Conheci Heloisa nos anos de chumbo da história brasileira, anos de ditadura, entre 1969 e 1970. Minha cunhada, Marily, pediu abrigo para a amiga. 

― Você pode acolher um desafeto da ditadura? 

Respondi: ― Sim. 

Não poderia saber o seu nome. Eu, recém-casada, recebi a amiga de minha cunhada. Ao conhecê-la, imaginei: deve ter a minha idade. 

Nos anos 1970, no Brasil, era mais seguro, em razão das perseguições políticas, desconhecer o nome de algumas pessoas, de onde vinham, onde trabalhavam e estudavam. Recebi Heloisa, como alguém sem nome, sem lugar de origem e sem história.

Entre um olhar, de cá para lá, e de lá para cá, reconheci timidez, vocação para o silêncio e habilidades culinárias. Delicada nos gestos e palavras, passou a viver conosco. Heloisa encontrou naquela casa da rua João Moura, em Pinheiros, uma jovem estudante de história (da FFLCH/USP) cursando o primeiro ano, casada com um estudante de arquitetura, também do primeiro ano (da FAU/USP). Eu não sabia que ela estudava filosofia. Trabalhava como professora primária numa escola pública, no Jardim Munhoz, em Osasco. Tentava alfabetizar os alunos, cursar história e ciências sociais ao mesmo tempo. Vivia correndo, querendo transformar o Brasil.

Tinha na cabeça (desordenada) algumas suposições sobre o método Paulo Freire de alfabetização. Recém-formada e aflita com meu insucesso na alfabetização das crianças, partilhei angústias pedagógicas com a hóspede secreta. Detalhei as dificuldades e, em meio a uma conversa repleta de projetos pouco convencionais, resolvemos “revolucionar a alfabetização”, criar um método, partindo de princípios artísticos. A ideia, produzida na cozinha e baseada numa estética particular, nos parecia pedagogicamente revolucionária. Quanta pretensão adolescente.

Tratava-se de ensinar a ler e escrever a partir de sugestões propostas pelas crianças. O nosso objetivo era perseguir o caminho do prazer, da alegria e da irreverência. Dividimos o trabalho entre nós duas. Eu perguntaria às crianças o que era bonito para elas. A amiga secreta faria a cartilha, selecionaríamos os objetos, os verbos e os adjetivos. Faríamos o material, e eu implementaria a cartilha junto à garotada, ensinando a leitura e a escrita a partir das palavras sugeridas pelas próprias crianças, aprimoradas por nós, por meio de princípios artísticos.

Fui para a escola, no Jardim Munhoz, Osasco, e perguntei aos alunos o que, para eles, era muito bonito. A palavra acordada em sala de aula, pela maioria, daria origem à cartilha. Venceu um objeto: Conga. Tratava-se de um tênis de lona colorida, com sola de borracha, em geral azul.

Passamos o dia imaginando uma aula voltada para cores e sapatos extravagantes. Cores fortes faziam parte do imaginário psicodélico da época. Heloisa foi muito além, procurando objetos/palavras sugestivas. Pensou em poetas, poesias, sonoridades, rimas, personagens literárias. Seu repertório era imenso e sofisticado. Fiquei encantada.

As palavras já eram a sua vida.

Quando convivemos com uma pessoa e dela não sabemos sua história pregressa, o passado, vazio de histórias, se torna um desafio indiciário. Surge uma imensa curiosidade. Quanto mais Heloisa inventava maneiras para que eu conseguisse alfabetizar as crianças, mais eu descobria nela encantos/indícios de sua provável história. Às vezes me sentia pequenininha, invejava sua forma sofisticada de tratar a literatura e falar outras línguas. De onde vinha a amiga secreta? Quem eram seus pais? Teria irmãos? Cresceu na fartura? 

Alguns indícios sugeriam ser Heloisa uma rica herdeira, de família aristocrática do Sul do Brasil. Aquela forma de falar era própria de gente do tipo modesta-aristocrata. Escolhi para a minha amiga secreta um estado para o seu nascimento, graças ao sotaque, o Rio Grande do Sul, e dei a ela, imaginariamente, uma vida farta, sofisticada, da qual fazia parte uma biblioteca.

Uma personagem/hóspede com origem oculta morando na sua casa em época de repressão gera, inevitavelmente, curiosidade e hipóteses ficcionais a rodo. Construí, na minha imaginação, uma “Heloisa ficcional”. Alguns vestígios sugeriam alma literária, de sensibilidade ímpar e com uma maneira peculiar de manejar as palavras. Ela dominava o português, o francês e o inglês com agilidade fora do comum. Transitava entre personagens da literatura e, quando eu pedia ajuda, ela inventava, com sugestões simples e criativas, alternativas engenhosas.

Seu impulso natural era o silêncio. Manipulava bem as pausas nas conversas de forma a manter uma distância controlada de si mesma e do outro. Quando eu expressava minhas dificuldades pedagógicas, ela desenhava uma solução. Reunia palavras do cotidiano, observava o ritmo, sílaba a sílaba, supondo a leitura de uma criança. 

A riqueza do seu vocabulário me fez supor, ficcionalmente, que ela vinha de uma família abastada, católica e de centro-esquerda. Cheguei a pensar que sua frugalidade era apenas uma maneira elegante de esconder origens privilegiadas, repleta de viagens pelo mundo, com estudos de língua e literatura em institutos de elite no estrangeiro. Supus serem sua timidez e contenção uma maneira refinada de convívio com desconhecidos, um jovem casal de estudantes, politicamente engajados, com 21 anos. 

Pouco depois de chegar, Heloisa partiu. Partiu da mesma forma que outras pessoas, hóspedes da ditadura, partiram. Algumas para sempre.

O tempo provou ser ela, de fato, uma personagem diferente de outros “visitantes”, igualmente temporários. 

Seu domínio das palavras era incomum.

Ser editora e tradutora, como ela mesma confessa em um depoimento, envolve participação na escrita de outra pessoa, representa uma viagem pelo interior de outra língua, de outra linguagem. Envolve afinidade sensitiva com o escritor/autor, com a escrita, com a voz, com a cadência e a entonação de um outro. Traduzir literatura e poesia é viagem, é arte, uma espécie de casamento entre palavras. 

Hoje, vejo Heloisa como uma artista, integrante da geração nascida em 1947, marcada pela competência, precisão e escrita meticulosa. Ela era ao mesmo tempo artífice de novas sonoridades (habilidade necessária para traduzir poesia) com um toque de irreverência, do tipo Rita Lee (também nascida em 1947). Uma geração politizada, mas insatisfeita com a estética da esquerda, atenta às artes, à ruptura dos costumes, questionando velhos hábitos, estereótipos femininos de mulheres, matriarcas obedientes, generosas, capazes de encobrir a inteligência com o esforço. Heloisa faz parte de uma geração em que as palavras mudaram de sentido, e as músicas, de intensidade sonora. Mudaram os instrumentos, chegaram as flores.

Agosto de 1969 tem a marca de Woodstock.

A empatia entre nós foi instantânea. Um dia, na rua, encontramos minha cunhada, Marily, que, distraída, se referiu à minha amiga secreta pelo nome. Agora eu sabia. Aquela criatura, habitante temporária da minha casa, tinha um nome: Heloisa.

É difícil imaginar, hoje, a importância de conhecer um nome, ser livre para dizê-lo.

Pela manhã Heloisa avisou que ia embora. Eu já sabia seu nome. Imaginei: se ela chegou sem nome, deveria estar em perigo. Despedidas são tristes, especialmente em anos de chumbo. Seria uma viagem pelo Brasil, para o exterior ou para o infinito? Eu veria Heloisa novamente?

Reencontrei Heloisa quase meio século depois. Sabia, um pouco, de sua história. Suas origens eram diferentes daquelas que imaginei. Não era uma rica herdeira dona de terras, mas existia, em sua vida, uma biblioteca e um pai leitor-tradutor de histórias, de Cervantes. Suas terras férteis, riquezas, eram a literatura e a poesia. Convidei Heloisa para a minha festa de setenta anos. Tínhamos a mesma idade, era uma doce lembrança.

Heloisa vai fazer falta em tempos novamente difíceis. Sua herança, as traduções, estão bem guardadas, nas nuvens.

Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada do departamento de história da Universidade de São Paulo. Realizou pós-doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris) em 1992 e na Universidade de Macau (China) em 1995. Fez parte da comissão da Biblioteca Nacional responsável pela seleção de livros para a formação de bibliotecas públicas em todo o Brasil. Presidiu a Comissão da Verdade-USP. Em 2018 recebeu o prêmio Grão-Mestre da Ordem Nacional do Mérito Educativo em razão de seus trabalhos junto ao Ministério da Educação em favor da educação brasileira.