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Fuga da Sibéria

Por Liev Trótski

18 de abril de 2024
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Este capítulo do livro Fuga da Sibéria foi gentilmente cedido pela Ubu para o Anuário 2023 da Megafauna. Fuga da Sibéria tem tradução de Letícia Mei.

Ida


3 de janeiro de 1907


Lá se vão duas ou três horas que estamos na prisão transitória. Confesso que fiquei nervoso por me separar da minha cela na “preventiva”. Estava tão acostumado àquele pequeno aposento onde trabalhava tão à vontade. Na prisão de transferência, como já sabíamos, nos colocariam numa cela comum – há algo mais exaustivo que isso? Além do mais, a sujeira de sempre, a agitação e a bagunça do caminho percorrido em etapas. Quem sabe quanto tempo levará até chegarmos lá? E quem pode prever quando voltaremos? Não teria sido melhor ficar no número 462, ler, escrever e… esperar? Para mim, como a senhora sabe, é uma grande proeza moral mudar de um apartamento para outro. E a transferência entre prisões é ainda mais dolorosa. Nova administração, novos atritos, novos esforços destinados a criar relações não muito claras. Adiante haverá uma mudança contínua das figuras de autoridade, desde a administração da prisão de transferência de São Petersburgo até o guarda do povoado siberiano no local do exílio. Já fiz esse caminho uma vez e agora o começo novamente sem um ânimo especial.

Fomos transferidos subitamente para cá hoje, sem aviso prévio. Na sala de recepção, obrigaram-nos a trocar as roupas por uniformes prisionais. Cumprimos esse procedimento com uma curiosidade infantil. Foi interessante ver-nos uns aos outros em calças cinza, sobretudo cinza e chapéu cinza. Não havia, porém, o clássico “ás”¹ nas costas. Permitiram-nos manter nossas roupas íntimas e sapatos. Num grande grupo animado, entramos de vestimentas novas em nossa cela…

A relação da administração local conosco, ao contrário dos rumores negativos sobre a “transferência”, mostrou-se muito decente, em alguns aspectos até cortês. Há razões para crer que houve instruções especiais neste sentido: vigiem atentamente, mas não criem incidentes!

O dia exato da partida ainda é cercado por um grande mistério: pelo visto, temem manifestações e tentativas de libertação forçada ao longo do caminho.

10 de janeiro

Escrevo-lhe de dentro do trem… Agora são nove da manhã.

Nessa madrugada, fomos acordados às três e meia pelo agente penitenciário chefe – a maioria de nós mal teve tempo de se deitar, distraídos pelo jogo de xadrez –, informando que nos mandariam embora às seis horas. Esperamos tanto tempo por isso que a partida nos pareceu… repentina.

Tudo se seguiu como deveria. Apressados e confusos, arrumamos as coisas. Então, descemos até a recepção, para onde também levaram as mulheres e as crianças. Lá fomos recebidos por um comboio que examinou nossos pertences às pressas. Um assistente sonolento entregou nosso dinheiro ao oficial. Em seguida, colocaram-nos nos vagões prisionais e, sob pesada escolta, fomos levados para a estação Nikoláievski. Incrível que nosso comboio tenha chegado em caráter de urgência de Moscou: pelo visto não confiavam no de São Petersburgo. O oficial da recepção foi muito gentil, mas demonstrou total ignorância nas respostas às nossas perguntas. Ele informou que um coronel da gendarmeria se encarregaria de nós e daria todas as instruções. Já ele, o oficial, recebera ordens para nos levar à estação – e só. Pode ser, é claro, que fosse mera diplomacia de sua parte.

Já faz uma hora que estamos a caminho e, até agora, não sabemos se de Moscou ou Vólogda. Os soldados também não sabem – esses realmente não sabem.

Temos um vagão separado, de terceira classe, bom; cada um tem um lugar para dormir. Para os pertences também há um vagão especial, no qual, segundo os guardas, colocam dez gendarmes que nos acompanham sob o comando de um coronel. Nós nos acomodamos com a sensação dos que vão indiferentes pelo caminho que percorrem: tanto faz, irão para onde devem ir…

Parece que estamos indo para Vólogda: um dos nossos identificou o caminho pelo nome da estação. Isso significa que estaremos em Tiumén dentro de quatro dias.

O pessoal é muito animado – viajar diverte e entusiasma depois de treze meses de prisão. Embora haja grades nas janelas do vagão, por trás delas agora há liberdade, vida e movimento… Quanto tempo levará para conseguirmos voltar por estes trilhos?


9 de fevereiro. Aldeia Kandínskoie

Percorremos mais cem verstas. Até Beriózov faltam dois dias. Chegaremos lá no dia 11. Hoje estou bem cansado: não comi nada ao longo das nove ou dez horas de viagem ininterrupta. Seguimos o tempo todo o Ob, ou os rios – os Obs, como dizem os cocheiros às vezes. A margem direita é montanhosa, arborizada. A esquerda, baixa. O rio é largo. O ar está calmo e cálido. Em ambos os lados da estrada erguem-se os pinheirinhos: espetam-nos na neve para marcar o caminho. Os ostíacos conduzem na maior parte do tempo. Fazem isso em duplas e trios, atrelados em fila única, pois, quanto mais se avança, pior a estrada; os cocheiros levam um longo chicote de corda preso a um longo cabo. O comboio estende-se por uma imensa distância. De tempos em tempos, o cocheiro grita com voz selvagem. Então, os cavalos galopam em velocidade máxima (“a toda”, como dizem por aqui). Levanta-se a densa poeira enevoada. É de tirar o fôlego. Uma kochevá salta sobre a outra, o focinho do cavalo projeta-se por detrás do ombro e respira na tua cara. Depois, alguém capota, algo de um cocheiro desata ou se rompe. Ele para. Para também todo o comboio. Você se sente hipnotizado pela longa viagem. Silêncio. Os cocheiros gritam sons guturais ostíacos uns para os outros… Então, os cavalos arrancam e cavalgam a toda. As paradas frequentes atrasam muito e não permitem que os cocheiros façam como acham melhor. Avançamos 15 verstas por hora, enquanto a verdadeira marcha aqui é de 18 a 20, até 25 verstas por hora…

A marcha rápida é algo corriqueiro na Sibéria e, em certo sentido, necessário em função das enormes distâncias. Mas uma assim nunca vi, nem mesmo no Lena.

Chegamos à estação. Além da aldeia esperam-nos as kochevás atreladas e os cavalos de reposição: duas kochevás para famílias que irão até Beriózov. Rapidamente trocamos de trenó e continuamos. Aqui o cocheiro senta de modo particular. Na parte dianteira da kochevá há uma tábua pregada bem na borda; esse lugar chama se gazebo. O cocheiro senta-se sobre o gazebo, ou seja, na tábua lisa, com as pernas penduradas, de lado, para fora do trenó. Quando os cavalos galopam e a kochevá oscila, o cocheiro a direciona com seu próprio corpo, inclinando-se de um lado para o outro e, por vezes, empurrando com as pernas…

12 de fevereiro. Beriózov. Prisão

Há uns cinco ou seis dias – à época não escrevi sobre isso para não suscitar preocupações desnecessárias –, atravessamos uma área totalmente contaminada pelo tifo. Agora esses lugares já ficaram para trás. Nas iurtas de Tsingali, que mencionei em uma das cartas anteriores, o tifo atingiu trinta das sessenta isbás. O mesmo em outros vilarejos. Morte em massa. Não havia quase nenhum cocheiro que não tivesse perdido um parente. A aceleração da nossa viagem e a mudança do itinerário inicial relacionam-se diretamente com o tifo: o prístav acrescentou à motivação de seu pedido telegráfico a necessidade de passar o mais rápido possível pelos locais infectados.

Ultimamente, a cada dia avançamos noventa ou cem verstas em direção ao norte, ou seja, quase um grau de latitude. Graças a esse movimento contínuo, o declínio da cultura – se é que se pode falar de cultura aqui – surge diante de nós com nítida clareza. Todos os dias descemos mais um degrau rumo ao reino do frio e da selvageria. Essa é a sensação que experimenta um turista ao escalar uma montanha alta, atravessando uma zona após a outra… Primeiro, vieram os prósperos camponeses russos. Depois, os ostíacos russificados, que perderam metade da aparência mongol graças aos casamentos mistos. Logo passamos por uma faixa agrícola. Surge a figura do ostíaco-pescador, ostíaco-caçador: uma pequena criatura desgrenhada falando russo com dificuldade. Os cavalos tornam-se cada vez mais raros e piores: o transporte não tem um papel importante aqui, e um cão de caça nesses lugares é mais necessário e valioso do que um cavalo. A estrada também se fez pior: estreita, toda desnivelada… E, mesmo assim, de acordo com o prístav, “os exemplares” ostíacos daqui parecem ser um modelo de alta cultura em comparação com os que vivem nos afluentes do Ob.

Aqui nos tratam com perplexidade e desconcerto – como se fizéssemos parte, talvez, de um governo temporariamente deposto.

Um ostíaco perguntou hoje:

— Onde está o seu general? Mostre-me o general… É ele quem eu gostaria de ver… Nunca vi um general na vida…

Enquanto um ostíaco atrelava um cavalo ruim, outro lhe gritou:

— Dá uma caprichada; você não está atrelando para o prístav

No entanto, também aconteceu um caso contrário, único do gênero, quando um ostíaco, por alguma razão relacionada à equipagem, disse:

— Esses membros não são lá grande coisa…

Ontem à noite chegamos a Beriózov. A senhora não vai exigir, é claro, que eu lhe descreva a cidade. Ela se parece com Verkholiénski, Kírensk e tantas outras com cerca de mil habitantes, um isprávnik e um erário. No entanto, aqui também exibem – sem garantia de autenticidade – o túmulo de Osterman² e o local onde está enterrado Ménchikov³. Os modestos ostíacos mostram ainda a velha casa em que Ménchikov fazia suas refeições.

Levaram-nos diretamente para a prisão. À entrada se encontrava toda a guarnição local, umas cinquenta pessoas enfileiradas. Como se pode ver, a prisão foi limpa e lavada duas semanas antes da nossa chegada, tendo sido previamente liberada dos prisioneiros. Em uma das celas encontramos uma grande mesa, coberta com uma toalha, cadeiras vienenses, uma mesinha de carteado, dois castiçais com velas e uma luminária de família. Quase comovente!

Vamos descansar aqui por uns dois dias, depois seguiremos adiante…

Sim, adiante… Mas ainda não decidi por qual caminho…

  1. Trótski refere-se a uma espécie de aplique em forma de losango – popularmente conhecido como “ás de ouros” – que, fixado nas costas, caracterizava a indumentária dos condenados ao exílio perpétuo. [N.E.]
  2. Andrei Ivánovitch Osterman (1686-1747), político e diplomata russo exilado em Beriózov, na Sibéria. [N.T.]
  3. Aleksandr Danílovitch Ménchikov (1673-1729), estadista russo também exilado em Beriózov. [N.T.]

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