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Nos últimos meses, Brasil e mundo vêm atravessando um período turbulento. A literatura e os livros, de maneira geral, sempre falaram de tempos difíceis. O inferno ou situações infernais são a própria matéria-prima dos livros.
Como forma de refletir sobre este período, promovemos de agosto a dezembro de 2020 a Temporada no inferno. A partir de livros selecionados pela nossa equipe de curadoria, atravessamos os mais diversos infernos: das grandes guerras às piores pestes e epidemias, do racismo às ditaduras, das mais dolorosas perdas pessoais ao enclausuramento e à loucura. Como parte da programação, convidamos escritores, pesquisadores e artistas para ler e comentar trechos de representações de situações infernais na literatura.
ROBERTA ESTRELA D’ALVA LÊ “POEMAS DO POVO DA NOITE”
Para a pesquisadora e slammer Roberta Estrela D’Alva, uma boa ilustração do inferno é o “Poema-Prólogo”, do livro “Poemas do povo da noite”, de Pedro Tierra, pseudônimo do poeta e político tocantinense Hamilton Pereira da Silva, preso e torturado durante a ditadura.
BERNARDO CARVALHO LÊ “O MESTRE E MARGARIDA”
Aqui, o escritor Bernardo Carvalho lê um trecho do clássico russo “O mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, que narra a visita do Diabo a Moscou: “É um livro maravilhoso, uma história de amor extraordinária, mas é também um livro de redenção em que o humor e a vingança estão misturados e confundidos.”
AVE TERRENA ALVES LÊ “A QUEDA PARA O ALTO”
Todo mundo já passou uma temporada no inferno.
Para Ave Terrena Alves, “A queda para o alto” (1982), de Anderson Herzer, é um retrato da marginalização a que alguém está exposto em razão da sua mera existência. “Para mim, isso é o inferno”, comenta Ave Terrena.
O livro é a autobiografia de Herzer, poeta que foi internado pela família na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem) dos quatorze aos dezessete anos, sem ter cometido nenhum crime. Herzer se suicidou aos vinte anos.
LUIZ ANTONIO SIMAS LÊ “A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS”
“Andam por aí ulceradas, sujas, desgrenhadas, com as faces intumescidas e as bocas arrebentadas pelos socos, corridas a varadas dos quiosques, vaiadas pela garotada. Nas noites de chuva, sob os açoites da ventania, aconchegam-se pelos portais, metem-se pelos socavões, tiritando…”
Ao ler um trecho de “A alma encantadora das ruas” (1908), de João do Rio, o historiador carioca Luiz Antonio Simas chama a atenção para o inferno da exclusão social das “sobras viventes” em situação de rua. Denunciado pelo cronista no início do século XX, “o inferno, cem anos depois, ainda está aí,” alerta Simas.
RENATA SORRAH LÊ “O QUE O SOL FAZ COM AS FLORES”
A poeta canadense de origem indiana Rupi Kaur, conta a atriz Renata Sorrah, se destaca por sua forma particular de tratar do cotidiano muitas vezes infernal do universo feminino. Ela escolheu ler o poema “Casa”, do livro “O que o sol faz com as flores” (2018), sobre situação de violência sexual.
ALCIDES VILLAÇA E A REPRESENTAÇÃO DO INFERNO
“Uma vez sitiado em palavras, uma vez transformado em qualquer matéria de representação artística, o inferno se transveste numa forma particular de beleza, seja ela qual for.”
Em leitura de texto feito especialmente para a Megafauna, o professor e poeta Alcides Villaça comenta a representação do inferno nas artes.
ITAMAR VIEIRA JUNIOR LÊ “O SONHO DA ALDEIA DING”
Nos anos 1990, autoridades do Partido Comunista na província chinesa de Henan incentivaram que fazendeiros vendessem seu sangue. Seduzidos pela perspectiva de deixar a pobreza para trás, milhares responderam ao chamado, dando início a um ciclo desenfreado de coleta e tráfico de sangue. Padrões básicos de higiene foram ignorados, seringas reutilizadas, sangues de doadores misturados e, como resultado, o HIV se espalhou pela região. O escândalo em sua terra natal inspirou o autor Yan Lianke a escrever “O sonho da aldeia Ding”, escolhido por Itamar Vieira Junior para a sua leitura.
FAUSTO FAWCETT LÊ “POWER INFERNO”
O escritor e compositor carioca Fausto Fawcett comenta sua escolha de leitura de um inferno: “Power Inferno”, de Jean Baudrillard. Na coletânea de artigos, o filósofo e sociólogo francês apresenta uma radiografia do mundo pós 11 de Setembro, esmiuçando e conectando temas como terrorismo, globalização, mídia, guerra, futuro, imperialismo, negócios, tecnologia e propaganda. No livro, destaca Fausto, Baudrillard escancara como a globalização “está deixando muita gente excitada, mas muito mais gente desperdiçada”.
STEPHANIE BORGES LÊ “REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME”
“Porque lugar de cabeça é na cabeça, lugar de corpo é no corpo.” A poeta e tradutora Stephanie Borges lê uma seleção de poemas de Stela do Patrocínio e comenta o inferno vivido na Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica no Rio de Janeiro onde Stela – diagnosticada com esquizofrenia – ficou internada por 25 anos, até sua morte, em 1992, sem jamais receber uma visita. A fala era a forma de escrita de Stela, que questionava o que era a sanidade e o que era a loucura, criticava o tratamento dado aos alienados, compartilhava sua visão de mundo e sua história. Parte de seus falatórios foi registrada em áudio e postumamente lançada no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (2001), organizado pela poeta e psicanalista Viviane Mosé.
CELSO SIM LÊ “UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM”
“O fogo do inferno não dá origem à luz. […] A última e a rainha de todas as torturas é a eternidade do inferno e da dor.”
Celso Sim destaca, em sua escolha, a relação que James Joyce estabelece entre inferno e eternidade em “Um retrato do artista quando jovem” (1916). Em seu primeiro romance, Joyce conta a história de um jovem católico irlandês que rejeita sua religião, família e pátria para se dedicar à arte.
JULIA WÄHMANN LÊ “O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO”
“As palavras não me bastam para encontrar um significado. Neste caso, preciso que o que penso e acredito seja penetrável, ao menos para mim mesma.”
Em “O ano do pensamento mágico” (2005), a norte-americana Joan Didion narra o período de um ano que se seguiu à morte de seu marido, durante o qual tentou elaborar o luto enquanto sua única filha sofria de uma grave doença. Para a escritora Julia Wähmann, voltar a este livro em tempos de pandemia e luto coletivo é um alento: “Ao contrário do que a Didion fala, dessa desconfiança dela sobre a insuficiência e a ineficácia de suas palavras para dar conta desse inferno que viveu, suas palavras são muito certeiras. Ela consegue escrever um livro que é tão bonito quanto doloroso”.
REINALDO MORAES LÊ “BARTLEBY, O ESCRIVÃO”
“Inicialmente, Bartleby realizava uma quantidade extraordinária de trabalho, como se há tempos estivesse faminto por algo que copiar. Ele parecia devorar os meus documentos. E não havia pausa para a digestão. Ele trabalhava dia e noite, copiando à luz do dia e à luz de velas. Sua dedicação deveria deixar-me bastante satisfeito, uma vez que ele era assaz laborioso. Mas ele escrevia em silêncio, de maneira mecânica e apática.”
“Bartleby, o escrivão” (1853), de Herman Melville, traz ao escritor Reinaldo Moraes a lembrança do horror que foi, para ele, trabalhar em um “ambiente desvirilizante e acachapante” como o da maioria dos escritórios: “Era um lugar a que eu ia sempre meio angustiado e saía de saco cheio. E, para mim, aquilo era um inferno!”
NOEMI JAFFE LÊ “TUDO O QUE TENHO LEVO COMIGO”
“Quando a nossa fome está no seu pico, nós falamos sobre infância e comida. As mulheres mais do que os homens. E ninguém fala mais sobre comida do que as mulheres do campo.”
Noemi Jaffe conta que esse trecho, traduzido por ela de uma edição estrangeira de “Tudo o que tenho levo comigo” (2011), romance da Nobel de Literatura Herta Müller, ilustra a experiência infernal dos campos soviéticos de trabalho forçado para onde romenos de origem alemã foram deportados após o fim da Segunda Guerra Mundial. Entre os deportados estavam a mãe de Müller e seu amigo poeta Oskar Pastior, que inspirou o livro.
ISABEL WILKER lê “A vegetariana”
“Já não consigo dormir mais que cinco minutos. Assim que caio no sono, começo a sonhar. Não: nem sequer posso chamar isso de sonho. Não passam de cenas curtas que me assaltam de forma intermitente. Olhos ferozes de alguém animal. Imagens sangrentas. Um crânio aberto de algum e, de novo, os olhos ferozes de algum animal. Olhos que parecem ter nascido de minhas entranhas.”
O romance “A vegetariana”, da sul-coreana Han Kang, ilustra, para a atriz Isabel Wilker, um inferno que pode nos acometer repentinamente, sem explicação lógica. Mais do que um castigo, para Isabel o inferno seria um tormento misterioso, um pesadelo atravessado por nós dormindo ou acordados.
SOFIA NESTROVSKI LÊ “COMO ME TORNEI FREIRA”
“Nunca havia provado nada tão repugnante. […] O primeiro bocado desenhou no meu rosto uma careta involuntária de nojo que ele não pôde deixar de ver. Foi uma careta quase exagerada, que conjugava a reação fisiológica e seu acompanhamento psíquico de desilusão, medo e a trágica tristeza de não poder seguir papai nem mesmo neste caminho de prazeres.”
Na cena de abertura de “Como me tornei freira”, de César Aira, é narrado o asco provocado pelo sorvete na desastrosa primeira visita de uma criança a uma sorveteria, para a decepção e fúria do seu pai. Para a escritora Sofia Nestrovski, o trecho evoca o inferno “do isolamento que é ser criança e não juntar uma coisa com a outra”. De forma divertida, o autor argentino, nessa e em outras cenas da novela, ilustra a dissonância entre o mundo interior da criança e o exterior, em que adultos impõem seus desejos.
KALAF EPALANGA LÊ “TERRA SONÂMBULA"
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas, que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.”
O escritor angolano Kalaf Epalanga recorda que “Terra sonâmbula”, do moçambicano Mia Couto, o marcou muito. No romance, o menino Muidinga e seu velho protetor Tuahir caminham a esmo, fugindo da morte. Quando foi lançado, em 1992, tanto Angola como Moçambique enfrentavam os efeitos de guerras civis devastadoras. “Lembro-me de que, quando este livro me chegou à mão, foi numa altura em que em Benguela, minha cidade-natal, estavam a chegar centenas e centenas de refugiados, pessoas que caminharam a pé, passando por um verdadeiro inferno para sobreviver.”
SOFIA MARIUTTI LÊ “O DESAPARECIDO OU AMERIKA”
Para a poeta e tradutora Sofia Mariutti, “O Desaparecido ou Amerika” (1927), primeiro romance de Franz Kafka, narra uma verdadeira descida ao inferno. “Desde a primeira página, a gente sabe que tudo só pode e vai dar errado, mas mesmo assim a gente continua lendo.”
No romance, um jovem alemão expulso da casa dos pais tenta a vida nos Estados Unidos. “Esse trecho, para mim, é especialmente infernal porque ele traz a imagem de um sísifo acorrentado ao peso do próprio trabalho. Para se sustentar, ele precisa trabalhar de dia. Trabalhando de dia e estudando à noite, ele não tem como dormir. […] Ele sabe que vai conseguir dormir quando terminar os estudos, mas ele não sabe quando vai terminar os estudos”, diz Sofia, lembrando que a situação do personagem se assemelha à de Kafka, que trabalhava de dia e escrevia de madrugada.
JEFERSON TENÓRIO LÊ “NOTAS DE UM FILHO NATIVO”
“Quando o levamos ao cemitério, estávamos cercados pelos detritos da injustiça, da anarquia, do descontentamento e do ódio. Para mim, era como se o próprio Deus tivesse preparado, para marcar a morte de meu pai, a mais prolongada e brutalmente dissonante das codas. E parecia-me também que a violência que nos cercava no dia em que meu pai partiu deste mundo tinha sido pensada como um corretivo para o orgulho de seu filho mais velho. Eu havia rejeitado a crença naquele apocalipse que ocupava um lugar central na visão de mundo de meu pai; pois bem – a vida parecia estar me dizendo –, eis aí um bom sucedâneo do apocalipse, enquanto o próprio não chega.”
A escolha de Jeferson Tenório para representação do inferno na literatura é “Notas de um filho nativo”, ensaio que dá nome à recém-lançada coletânea do norte-americano James Baldwin. “Considero esse trecho uma temporada no inferno justamente porque fala dessa relação do Baldwin com o pai, em meio ao luto, a um funeral, e às lutas contra o racismo nos Estados Unidos.”
VERONICA STIGGER LÊ “A PAIXÃO SEGUNDO G.H.”
A cena da entrada da protagonista de “A paixão segundo G.H.”, romance de Clarice Lispector, no quarto de Janair é a escolha da escritora Veronica Stigger para a ilustração de um inferno na literatura. Na parede do cômodo da empregada doméstica, G.H. encontra um desenho a carvão de um casal nu e um cachorro, e no armário, uma barata. “A partir de tudo ali, ela fala já no início do livro que está indo para o ‘inferno de uma vida crua’. Para G.H., aquela chegada ao quarto é como uma descida a esse inferno, a esse algo que tem um aspecto demoníaco, mas ao mesmo tempo divino.”
ARRIGO BARNABÉ LÊ “A DIVINA COMÉDIA”
De todas as representações do inferno na literatura, a apresentada em “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, é uma das mais detalhadas e emblemáticas. Escrito no século XIV, o poema é divido em três partes – Inferno, Purgatório e Paraíso –, todas ricas em alegorias. Em seu vídeo para a Megafauna, o músico e ator Arrigo Barnabé lê o início do canto I da primeira parte, “Inferno”, na qual o escritor italiano, guiado pelo poeta Virgílio, descreve uma viagem por nove círculos de sofrimento que se afunilam até o centro da Terra. Na visão do inferno medieval, o círculo para o qual pecadores eram enviados e as punições às quais eram submetidos dependiam do que eles haviam feito em vida, sendo as camadas mais profundas destinadas aos donos dos pecados mais graves. Para Barnabé, esse trecho é especialmente infernal por toda a “inevitabilidade da condenação eterna” que evoca.
DANIEL GANJAMAN LÊ “DESCONSTRUÇÃO”
Convidado a ler um trecho que ilustrasse sua visão de inferno, o produtor musical Daniel Ganjaman escolheu a letra de “Desconstrução”, canção do álbum “Trilha para o desencanto da ilusão, Vol. 1: Amem”, do Síntese, grupo de rap de São José dos Campos. Ganjaman destaca a autenticidade dos rappers Gestério Neto e Leonardo Iran: “A forma caótica como o texto se organiza ajuda muito a retratar o que para mim possivelmente pode vir a ser o inferno”, diz.
ALAÍDE COSTA CANTA "A DAMA DE VERMELHO"
Quando surgiu, como parte da Temporada no Inferno, a ideia de convidar amigos da Megafauna para leitura de uma representação de experiências infernais, não imaginávamos escolhas tão diversas. Nenhum convidado escolheu um autor ou livro já citado. A cartilha de infernos também foi variada. Desde agosto, compartilhamos aqui no nosso IGTV leituras que falavam de luto, depressão, guerra, prisões, infância. Curiosamente, um inferno muito comum, que volta e meia atravessamos, ficou de fora. Tem dor mais doída do que a de um coração partido? Hoje, fechamos nossa temporada com a grande Alaíde Costa dando voz à sua visão de inferno em “A dama de vermelho”, valsa de Alcyr Pires Vermelho e Pedro Caetano gravada por Francisco Alves em 1943.