

Helô, pra sempre
Por Reinaldo Moraes
6 de outubro de 2022
Lá pro final dos anos 80, escrevi um romance de aventura, baseado num roteiro pra TV que não vingou. Joguei o manuscrito nas mãos da minha amiga Helô, que era editora na Brasiliense, onde eu havia lançado meu primeiro romance, anos antes. A Helô curtiu e ficamos de trabalhar na edição do texto. Mas, assim como o roteiro, o livro, A órbita dos caracóis, acabou não saindo. Heloisa logo se mandou da Brasiliense, eu fui fazer outras coisas, e o mundo, errante navegante, continuou a girar por aí.
Um século e um milênio mais tarde, em 2002, depois de 17 anos sem publicar nada, desengavetei o negócio, dei um bravo tapa no texto, e chutei a bola de volta pra Helô, agora editora da Companhia das Letras, ao lado da Marta Garcia, minha mulher, e da Maria Emilia Bender, outra grande amiga.
Um tempinho depois, a Helô me liga e anuncia: vamos conversar. Achei mais conveniente fazer isso num bar perto da editora, onde me instalei à sua espera, munido de cerveja e cachaça. Findo o expediente, a Helô chegô, me bejô, sentô, se ajeitô, pegô e jogô na mesa o print de umas 300 páginas do meu velho-novo romance. A garrafa de cerveja balançou. Enchi um copo pra ela. Minha amiga deu o primeiro gole e começou, com espuma nos lábios: “Rei, isso aqui, com algumas mexidinhas, dá um puta livro pro selo juvenil da editora”.
Juvenil? Nããão!, bradei no íntimo conturbado do meu eguinho literário. Fazia 17 anos que eu não publicava nada, e seria logo um livro juvenil? Isso é nicho de mercado, não é literatura, achava eu, que me queria na companhia dos autores do Dom Quixote, do Doutor Jekyll e Mister Hide, das Memórias póstumas de Brás Cubas e de On the road, nada menos. E que raio de mexidinhas ela sugeria que eu desse num texto que ela mesma já havia lido e aprovado, anos antes?
A Helô, em sua infinita doçura e relativa paciência, ignorou profissionalmente minha cara de gênio da raça injuriado e explicou seu ponto. Ela achava que eu tinha ali uma boa história de aventura contemporânea, envolvendo computadores, satélites e escargots envenenados, protagonizada por um casal de jovens brilhantes em suas respectivas áreas, ele a biologia, ela a computação. Além, é claro, de um vilão clássico com ideias mefistofélicas na cabeça e nenhum escrúpulo no coração. O que tava pegando eram os penduricalhos chocantes que eu tinha enfiado nessa nova versão do texto, algo, a seu ver, capaz de provocar aversão à obra.
Trocadilhos à parte, eu sabia do que ela estava falando. Na minha ânsia de voltar em grande estilo às prateleiras das livrarias, eu tinha anarquizado o meu próprio texto, atulhando o coitado de palavrões, cenas de sexo pentelhudas e escatologias de revirar os estômagos mais sensíveis. Eu queria causar, ora bolas. Ali, na mesa do boteco, onde repousava meu trabalho ao lado das bebidas, desafiei minha amiga a me apontar um exemplo de penduricalho que ela julgava incômodo.
Com um meio-sorriso zen-sarrista, a Helô abriu o print numa página já marcada e apontou um artifício da trama que eu julgava particularmente genial. Era o seguinte: o vilão tinha inscrito no próprio pênis o código que dava acesso ao sistema de navegação de um satélite nuclearizado que ele pretendia jogar sobre São Paulo. Vai daí que, pra ter acesso a esse código e mudar a rota do satélite cadente, a jovem heroína teria de provocar uma ereção no antagonista da história, um velho escroto.
Num livro juvenil, que é trabalhado nas escolas visando sua adoção, seria inadmissível uma gracinha hedionda desse quilate, esclareceu a Helô. “Há outras coisinhas do tipo, igualmente desimportantes pra história e pra narrativa. Tá tudo anotado aí”, ela disse, fechando o calhamaço e o empurrando com delicadeza pra mim. “Pense, repense e refaça, se quiser editar o livro com a gente. Se não, há outras editoras na praça. Fique à vontade”, arrematou.
Voltei pra casa tentando digerir uma bigorna na alma. Naquela mesma noite, deixei Cervantes, Stevenson, Machado e Kerouac dormindo em paz nas estantes de casa, abri o print com as anotações da Helô, liguei o computador, e comecei a trabalhar, com as palavras da Helô a martelar meus neurônios. Não demorou muito pra eu, enfim, admitir que toda aquela podrêra adicionada ao meu romancelho era mais descartável do que o bigode e o cavanhaque que o Marcel Duchamp desenhara na Monalisa. Um pouco depois, aliás, eu viria a escrever um romance onde tais porralouquices teriam seu devido lugar, mas isso não vem ao caso.
No fim das contas, A órbita dos caracóis virou um romance que alunos e professores podiam ler sem sobressaltos morais desnecessários. Virou também meu livro que mais vendeu até hoje, sem que a heroína tenha passado pelo constrangimento de provocar uma ereção no desgramado do vilão da história. Fui convidado para palestras em muitas escolas, nas quais meu “livro juvenil” tinha sido adotado. Imaginei que se o código fatal ainda estivesse tatuado no pinto do vilão eu definitivamente não teria tido o imenso prazer de papear com a molecada, bem como o de embolsar os direitos autorais mais polpudos da minha carreira literária.
Ou seja, pra grande sorte minha, a Heloisa Jahn, além de uma dedicada amiga, era uma tremenda editora, capaz de defender um manuscrito contra as idiossincrasias debiloides do próprio autor. Como bem sabiam todos que a conheceram, a Helô, também poeta e tradutora de mão cheia, trazia a chave drummondiana que abre a porta do reino das palavras e a emprestava com imensa generosidade a quem se dispusesse a ouvi-la com atenção.
Portanto, ergo aqui um brinde de saudade e gratidão a essa grande figura, pra sempre presente no coração dos amigos e nas centenas de livros que editou e traduziu.
Reinaldo Moraes, 72 anos, é escritor nas horas vagas: Tanto faz (1981), Pornopopeia (2009), Maior que o mundo (2018) e mais uns 7 ou 8 títulos. Nas horas cheias não faz nada.