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Forte coisa: treze maneiras de ver Heloisa Jahn

Por Samuel Titan Jr.

10 de julho de 2022
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1.

Faz vinte e cinco anos que nos encontramos pela primeira vez. Fui vê-la envergando uma camiseta surrada, provavelmente com algum furo. Anos depois, me vendo sempre de camisa passada, ela não perdia a chance: “Preferia você de camiseta”.

2.

Desconfiava de grandiloquências, e zombava das minhas. Mas tinha lá seu superlativo discreto, muito breve e não isento de ironia: “Forte coisa!”. Servia para o espanto, a admiração, também para a revolta e a dor.

3.

Colecionava patrias chicas, essas que não pedem pose e se traduzem em detalhes e retalhos de memória: Montenegro da infância, Dinamarca dos anos 70, Montevidéu do espanhol rio-pratense, Paquetá – e Paris.

4.

Mais para cá, inventou de construir uma nova patria chica, uma casa na serra, de cômodos concisos e janelas vastas, com direito a ponte, mirante e banco de madeira para desfrutar da vista.

5.

A Paris era a do exílio precoce, das descobertas, dos bicos para ganhar a vida, dos amores. Há um ano, mais ou menos, ela escreveu um texto sobre os clássicos, sobre essa propriedade de serem coisas conhecidas mas sempre novas. E, para explicar, arrematou: “Como Paris, como a natureza, como o mergulho no mar”.

6.

Na falta de mar para mergulhar, era fã de banho de banheira, com água bem quente e copo de uísque à mão.

7.

A Paris era também a do encontro com Cortázar. Então aqui vai uma cena para a posteridade: ela e ele perambulando pela cidade às escuras, conversando infinitamente; ela, baixinha, sobre a calçada; ele, cavalheiro e muito mais alto, andando pela sarjeta, para que a charla fosse de igual para igual.

8.

Era avessa a hierarquias, dizia ter o mesmo prazer e o mesmo orgulho trabalhando em livros infantis, poemas ou romances. Mas deu o melhor de si na tradução dos contos de Cortázar. Ela há de me perdoar se eu disser que foi sua obra-prima.

9.

Nas prateleiras, misturavam-se autores, gêneros, idiomas. Mas à parte, numa estante só deles, quase um altar, ficavam os livros de poesia.

10.

Não tinha nem vinte anos quando publicou um livro de poemas, Canto breve dos desamados. Quase nunca falava a respeito, dizia que era uma bobagem de guria. Mas dava um sorrisinho quando alguém aparecia com um exemplar achado num sebo – o mesmo sorrisinho que se permitia quando elogiavam as traduções de seu pai, Kurt.

11.

Na hora de traduzir prosa, tudo estava em encontrar, inventar o tom. Para traduzir poesia, o essencial era achar a respiração certa.

12.

Ano passado, ela me mandou uma foto de uma nota do tradutor que encontrou num livro: “Reader, I have taken liberties”. Acho que era a coisa que mais queria ter na vida: liberdade.

13.

Numa das últimas vezes que trocamos mensagens, perguntei: “ça va?”. Ela respondeu: “ça vazinho”.

Samuel Titan Jr. é professor de literatura da USP, editor, tradutor e coordenador editorial do IMS