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Das saídas num tempo sem saídas

Por Edimilson de Almeida Pereira

20 de março de 2022
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O poeta e prosador Ronaldo Cagiano, formado em direito, nasceu em Cataguases, Minas Gerais. Atualmente mora em Lisboa. Publicou os livros de contos Dezembro indigesto (2001), Dicionário de pequenas solidões (2006), Eles não moram mais aqui (2015 – Prêmio Jabuti); e os volumes de poesia Palavra engajada (1989), O sol nas feridas (2013), O mundo sem explicação (2019) e Cartografia do abismo (2020). Em linhas gerais, a escrita poética de Cagiano se caracteriza pelo caráter discursivo, por meio do qual o poeta analisa em detalhes as sombras do espírito e as ruínas das ações humanas.

Cartografia do abismo, composto por 127 poemas, apresenta aos leitores e leitoras as variações de forma e de conteúdo que sustentam o livro. Nos poemas curtos, a discursividade contrasta com a concisão da forma e propõe aos leitores um extenso repertório de informações. Em face dessa economia formal, informações complexas são sugeridas através de versos compactos. Para explicitá-las, é necessário que os leitores participem do poema, considerando os índices propostos por ele. Com essa técnica, o poeta revisita os jogos semióticos do corte e montagem das palavras para estimular a discussão acerca de questões históricas e sociais.

Nos poemas longos, Cagiano destaca a relação entre a extensão do texto e a abordagem dos conteúdos. Em função disso, sem perder a concisão formal, o poema se inclina simultaneamente para o tom coloquial característico da crônica. Nesse caso, o diálogo entre o poeta e o prosador – entrelaçados na obra de Cagiano – resulta em poemas lírico-analíticos como “Conversa com Adélia Prado” (“Esse trem que nos percorre/ (em Divinópolis ou Cataguases)/ penetrando/ a noite/ madrugada/ os dias/ dos nossos sentimentos// atravessa a vida/ com seu comboio de mistérios”) e “Autópsia do instante” (“Nesse dia sujo e grave/ ao atravessar a Praça da República […]/ contemplo aquelas vidas/ em seus rudes acampamentos de papelão […]”).

O pessimismo, um dos aspectos da visão de mundo do poeta, é mencionado nos títulos dos seus livros (Dezembro indigesto e O mundo sem explicação) e de muitos de seus textos, a exemplo de “Explicação do fim” e “Colheita de desalentos” incluídos em Cartografia do abismo. Nessa obra, particularmente, exprime-se a voz de um sujeito poético que analisa o mundo como um roteiro de contrastes. Apesar disso, ele não deixa de reconhecer nas ruínas os sinais, ainda que frágeis, de alguma redenção do humano. A palavra é o suporte para a apreensão dessa perspectiva, como se vê nas passagens “o verbo me devolve ao éden” (“Palimpsestos”) e “Nesse tempo de absoluta dissolução/ sou contaminado e salvo pela poesia” (“Registro”).

Ao esquadrinhar a realidade, Cartografia do abismo se revela um livro tensionado pela necessidade de dizer “o agora”. Porém, para não ser devorado pela banalidade, esse dizer se impõe pela autocrítica, pela ironia e pelo cuidado estético. Cagiano ancora-se numa linguagem densa para denunciar – entre tantos dilemas do nosso tempo – a miséria social, o falseamento do sagrado e a violência. Diante das atrocidades, o poeta traduz como força a fragilidade do pensamento e vale-se da poesia (ela mesma um paradoxo: inútil e indispensável, contemporânea e atemporal, individual e coletiva, ao mesmo tempo) para vislumbrar, mesmo no abismo, um grão de ética e generosidade no ser humano.

A perspectiva niilista que norteia a cartografia traçada por Ronaldo Cagiano não inviabiliza as trocas de caráter pessoal (veja-se no interior do livro o constante diálogo com artistas e obras de diferentes tendências e períodos históricos) e de caráter político-social (note-se, por exemplo, a dura mediação que a violência estabelece entre lugares distintos. Por conta dela, o lá e o aqui, o local e o estrangeiro são relativizados a ponto de Damasco e a Rocinha serem configurados como um mesmo e outro lugar de sofrimento).

A par disso, Cartografia do abismo amplia nossa percepção do niilismo. Se o niilismo aponta um caminho sem volta diante do desamparo, como em “Fragmento” (“De nada nos apartamos/ […]/ Nunca é tarde/ para crescer o desalento”), é também a partir dele que se desenha um posicionamento crítico, que recusa as condições degradantes de nossa época. Portanto, sob a máscara do sujeito niilista é possível que se mova, timidamente, um sujeito disposto a “Adestrar o abismo” (“Urgência”) para não ser engolido pela sua fúria.

© Prisca Agustoni

Edimilson de Almeida Pereira é poeta e professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2017) e Poesia + antologia (2019). Sua obra de ficção inclui O ausente, Um corpo à deriva e Front – publicações de 2020.

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