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Economia do verbo e expansão poética

Por Edimilson de Almeida Pereira

16 de outubro de 2022
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Josoaldo Lima Rêgo nasceu no Maranhão, em 1979. De seu período de mestrado e doutorado em geografia humana da USP, resultaram, respectivamente, dois importantes trabalhos: Cosmovisão e modernidade: Sousândrade e a formação do campo visual em “O Guesa”, e O conceito de natureza: modernidade e política. Pela 7Letras, publicou os livros de poesia Paisagens possíveis (2010), Variações do mar (2012), Máquina de filmar (2014), Motim (plaquete, 2015) e Sapé (2019).

Uma mirada inicial para a coletânea Sapé revela seu aspecto conciso no número de poemas, bem como na estrutura de cada um deles. Os 42 poemas estão subdividos em três partes – “Cuspir fogo”, “Gestos” e “Desfolhagens” – que nos fazem pensar no jogo dialético em que a oposição entre a primeira e a segunda parte resultaria numa síntese na terceira. Contudo, essa expectativa se desfaz quando observamos que a epígrafe da obra, sob o espírito irônico de Murilo Mendes, anuncia uma performance (“função”) fragmentada, exposta num território de limites improváveis (“A praia do Acaba-Mundo”).

Valendo-se de técnicas cinematográficas exploradas no livro Máquina de filmar, o poeta passeia o olhar pelo mundo exterior. A materialidade das coisas se lhe apresenta depois de um escrutínio rigoroso: casas, unhas, bichos, mato, punho etc. são objetos definidos por seus limites e nos arranham com suas arestas. O homem, por sua vez, é um corpo enredado pelas tessituras da pele e dos órgãos, como se vê na sequência “a garganta exige o gosto de sal” (“Migrante”). A paisagem é apreendida a partir de recortes precisos, que ressaltam formas e contornos, mais do que insinuações mágicas, tal como se percebe em “no jardim/ só os pedaços/ de bichos/ pequenos” (“Esquecer”) e “Pinicar a carne. É o que chamam/ de mensagem direta.” (“Circo”). Contudo, esse núcleo duro do real só se transfigura em poema mediante o trabalho de recorte e (re)montagem das formas. É pela alquimia do verbo que esse núcleo se rompe, e cada uma de suas frações se adensa, enriquecendo-se com camadas nem sempre explícitas de novos significados.

Ao mesmo tempo que relativiza qualquer tentativa de hierarquização das relações entre forma e conteúdo, o poeta se desloca entre as percepções das culturas locais e uma visão de mundo cosmopolita: o aqui (“A camponesa sabe do calor/ no entorno da casa” – “Sapé”) e o lá (“notícias de viagem: arrecifes/ roçam testas de refugiados” – “Ciências”), apreendidos por uma linguagem atemporal, se convertem em duplo um do outro, incitando no leitor a vontade de “nada fazer” (“Ciências”). E é justamente sob essa atmosfera de aparente inércia que se descobre, como adverte o poeta (“caminha sem fixar olhos” – “Andarilho”), um possível método de compreensão daquilo que transcende a dureza das formas.

Exemplo dessa técnica que desenha uma ambiência abstrata a partir de eventos concretos pode ser observado na sequência “No fundo da floresta// Sinal do tempo/ no rosto/ longe da idade/ da morte // um Exu” (“Sonho”). A densidade do cenário representado pela floresta viabiliza a proposição enigmática da passagem do tempo e da vigência da morte. Numa linguagem entrecortada por suposições e alinhavada por elipses, o poeta reconstrói o princípio dialético da divindade Exu, aquele que está onde não está, que é presença mesmo na ausência.

Valendo-se de poemas concisos em Sapé, Josoaldo Lima Rêgo articula uma poética tensa, que depende da precisão do corte para despertar no leitor o desejo pela reflexão metafísica. Não é por acaso, que o emprego da técnica do corte e da montagem se converte no eixo do presente livro. O desafio dessa série de poemas consiste em transformar a linha que limita os objetos em fenda por onde se insinuam as derivações do significado. Ou seja, quanto mais economiza na forma (“atrás do minério da última língua” – “Carajás”), mais o poeta assegura que há um mundo complexo a ser decifrado.

© Prisca Agustoni

Edimilson de Almeida Pereira é poeta e professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2017) e Poesia + antologia (2019). Sua obra de ficção inclui O ausente, Um corpo à deriva e Front – publicações de 2020.

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