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Para não esquecer

Por Rita Palmeira

25 de novembro de 2022
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Os órfãos é um romance magistral. De autoria de Bessora, escritora de tripla nacionalidade (francesa, gabonesa e suíça) que participa desta edição da Flip, ele une em um mesmo enredo as maiores chagas do século XX, ambas variações da abjeta ideologia de supremacia racial: o nazismo alemão e o apartheid sul-africano.

O livro conta a história dos gêmeos Wolfgang e Barbara, que, órfãos da guerra, são levados do abrigo onde vivem, na Alemanha, para a África do Sul. Estamos em 1948 e em muitos lugares persiste, apesar da vitória dos aliados três anos antes, a crença na pureza ariana. O programa em que os irmãos são incluídos envia crianças para a África a fim de promover o branqueamento da população. Os gêmeos têm oito anos quando são adotados por Michèle e Lothar Schultz e passam a viver com eles e com Jacob, o avô produtor de vinhos. Vale lembrar, porque fundamental para a construção narrativa, que 1948 é também o ano que marca o início do regime do apartheid na África do Sul.

Ao desembarcarem na Cidade do Cabo, Barbie e Wolf (que narra a história) não têm a melhor das acolhidas por parte dos agora pais adotivos, que desejavam crianças menores. 

“Limpos como dinheiro novo, estamos embalados como presentes etiquetados.

Barbara Schultz, nascida dia 18 de julho de 1940.

Wolfgang Schultz, nascido dia 18 de julho de 1940.

Eles andam na frente, debaixo do guarda-chuva.

Nós andamos atrás, debaixo da chuva.”

O novo lar dos órfãos é, como a política nacional, igualmente racista e segregacionista. (A título de curiosidade, basta dizer que são contrários até mesmo à variedade de uva pinotage, porque resultante de cruzamento de cepas diferentes…) O primeiro amigo que as crianças fazem, no entanto, é um menino negro, pouca coisa mais velho que eles. Thando é filho de Graça, que trabalha como empregada na casa, foi ama de leite de Michèle e está há anos com os Schultz (soa familiar?).

A vida na escola não se dá sem conflito. As crianças sofrem bullying, e o único a defendê-los se dirige aos colegas nos seguintes termos: “― Vocês deveriam agradecer a ele e à irmã! […] Eles vieram da Alemanha nos trazer sangue novo!”. A ideia de que seriam emissários da purificação da África é assustadora para as duas crianças alemãs. O lar pouco amoroso não ajuda a fazê-los se sentir pertencentes àquela terra. Criam a ilusão de que poderiam voltar à Alemanha. Com ajuda de Thando, os três decidem fugir e pegar um navio para a Europa:

“E aqui estamos, sentados num banco, no porto do Cabo. Reconheço o cais onde desembarcamos antes. Mas não há nenhum barco no horizonte, pelo menos para a Europa. Depois de uma longa espera, Thando ri, pois suas costas estão cobertas de tinta – ele acaba de se dar conta. Nós três nos apoiamos numa inscrição recém-pintada. Whites Only.

Rimos, morremos de rir. Até que Thando dá um grito de dor.

Um cavalheiro de uniforme acaba de lhe dar um chute. Thando sai dali depressa, como sabe fazer. O homem de uniforme se curva na nossa direção: ― Está tudo bem?”

E assim o racismo e o apartheid vão sendo apresentados aos gêmeos. A criança negra, ao contrário, já os conhece: “Thando sai depressa, como sabe fazer”. Os planos de fuga, claro, naufragam, e os dois permanecem no país, mas não se transformam em arianos orgulhosos, como esperavam os pais adotivos, sobretudo a mãe. Tornam-se críticos ao sistema segregacionista, cuja hipocrisia se mostra até mesmo no seio daquela família que se acreditava pura. O custo emocional, contudo, é bastante alto para os dois. Como lidar com a culpa de serem arianos na Alemanha nazista ou na África do Sul segregacionista?

*

Endereçada por Wolf à irmã, a narrativa de Os órfãos atravessa 70 anos da vida dos dois. Interpõem-se à narrativa principal trechos de diálogos que, à guisa de pequenos capítulos autônomos, informam que Wolf foi baleado pelo filho de Thando; a data é emblemática – 18 de julho de 2018, cem anos de Mandela (e também o aniversário de 78 anos dos gêmeos). Obama está em Joanesburgo para a celebração do Dia de Mandela. Será, afinal, possível a conciliação, a concertação imaginada pelos dois líderes em diferentes momentos?

Essas intercalações que marcam o presente da narração levam o leitor adiante: por que Wolf, um antissegregacionista, foi baleado e está à beira da morte nesse momento, tendo o país saído formalmente do regime havia 24 anos?

*

Esse é um livro sobre as cicatrizes do nazismo e do apartheid na história de duas crianças e daqueles ao redor delas. Mas é sobretudo um livro sobre a relação dessas marcas com o sentimento de pertencimento a um lugar. Wolfgang e Barbara são levados de seu país para outro. Adultos, retornam à Alemanha, mas descobrem que aquela nação tampouco é deles. “A Alemanha, mesmo que dê para encontrá-la, não existe mais. Talvez tenha mesmo desaparecido. Talvez o passado também não esteja mais lá. Seria preciso verificar”, conta Wolf sobre a percepção de Barbara.

Se, no começo da história, o leitor crê que a orfandade do título se deva à perda dos pais, ao final, e sobretudo para Wolf, o que sobressai é a pátria inexistente – a qual lugar eles pertencem, afinal? E, portanto, quem são eles? Wolf está preso a 1948, aos seus 8 anos, a essa expatriação de alguém que, adulto, se vê sem pátria, porque não suporta ser quem é.

Quando nasce a primeira filha de Wolf, ele se revela incapaz de cuidar dela. Tenta então explicar à esposa o que o atormenta: “Eu sinto muito. Mas se você estivesse em meu lugar, então sentiria. Quando te deslocam para que você reproduza, e você termina por cumprir sua missão, não pode trocar as fraldas dessa criança: ela é o triunfo de Michèle. Sobretudo quando a criança é a sua cara, e você detesta a sua cara. Porque eles a veneram.”

*

Faltou dizer que a história de Os órfãos é inspirada em fatos reais. E também que termino esta resenha ao mesmo tempo que jornais brasileiros relatam que, em Santa Catarina, grupos fazem saudação nazista em defesa de seu líder de extrema direita, derrotado na eleição de 30 de outubro.

A chegada do romance admirável de Bessora, que articula leveza narrativa à gravidade do narrado, sem, com isso, incorrer em prosa leviana (ao contrário), é, portanto, mais que oportuna; ela é necessária.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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