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A vida e a vida de Boris Fausto

Por Rita Palmeira

23 de janeiro de 2022
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À medida que os meses de confinamento avançavam, surgia aqui e ali a conversa: que faixa etária estaria sofrendo mais com a necessidade de ficar em casa? As crianças e adolescentes, para quem cada hora parece uma eternidade, ou os bem mais velhos, para quem cada mês passa num piscar de olhos? Qual das pontas da vida teria mais dificuldade de lidar com a privação do convívio social? O exercício de adivinhação servia, claro, para que, longe das pontas, sopesássemos a infelicidade produzida pelo confinamento, mas não só. A situação nova, a contragosto, oferecia uma outra forma de mensurar o tempo e administrar o medo da morte, sobretudo num país que, desgovernado, superava continuamente marcas de perdas.

Escrito durante a pandemia, o novo livro de Boris Fausto não se furta a isso ou a “outros detalhes”, como ele, com a jovialidade que lhe é característica, informa no título do volume. A origem do livro é a perda do irmão, o filósofo Ruy Fausto, em maio de 2020, a quem Vida, morte e outros detalhes é dedicado. A morte do irmão e a morte que naquele momento espreitava todos nós (inclusive o autor nonagenário) são os motores do livro, que, contudo, é costurado pelo bom humor de Fausto e por sua renovada aposta na escrita.

Conhecido por seu trabalho como historiador, Boris já havia adentrado a seara das narrativas de luto depois da morte de Cynira, em 2010, com quem foi casado por quase cinquenta anos. Seu O brilho do bronze, de 2014, tem o formato de um diário, no qual o autor registra por alguns anos sua vida sem a esposa. Vida, morte e outros detalhes não é um diário – é, antes, um misto de memórias e pequenas crônicas cotidianas.

Nas palavras iniciais, espécie de prefácio, Boris revela que, dois anos antes da morte de Ruy, os dois começaram a “trocar e-mails cujo conteúdo dizia respeito a diálogos, frases soltas, situações referentes ao mundo da infância e da adolescência”. O livro tentaria resgatar esse momento, e assim, mesmo quando Ruy não é personagem das histórias, parece que a interlocução se mantém. Com a morte do irmão, sem ter a quem mandar e-mails com as histórias de que talvez fossem ambos as últimas testemunhas, Boris trata de registrá-las – dever de ofício, talvez, historiador que é, mas também uma aposta na perpetuação da história da “tribo”.

As narrativas estão divididas em três partes. Em “A tribo”, que abre o volume, conhecemos a história dos irmãos Fausto – Boris, Ruy e Nelson – e a construção nem sempre simples da fraternidade entre os três. Em “Vida”, a parte mais extensa do livro, são reunidas histórias familiares e lembranças, pequenas crônicas ou breves comentários sobre assuntos diversos. Com “Morte e imortalidade”, contudo, somos trazidos aos dias de pandemia e distanciamento social. É quando Boris enfrenta o assunto que ronda o livro, mas que ele não deixa que tome conta da narrativa, e o faz com seu invejável humor. O que resulta daí é um livro em que a escrita se impõe como forma de escapar à morte – à do irmão, claro, mas também à própria.

Em “A tribo”, o autor narra, com honestidade tocante, a relação com Ruy e Nelson, e menciona o papel de cada um no ambiente familiar, sem escantear as disputas, as escolhas profissionais e políticas feitas à entrada da vida adulta de jovens meninos que muito cedo se viram desamparados pela perda da mãe. A história desses laços se mistura à história do país. As antigas dissensões políticas entre ele e Ruy perdem força com a ascensão da extrema direita: “Para esse bom entendimento, contribuiu a aproximação nos tempos do bolsonarismo, seja acerca da natureza desse pesadelo, seja acerca dos caminhos para enfrentá-lo”.

Ainda que prevaleçam, na segunda parte, as histórias de antanho – os personagens que orbitavam a família, a própria família, com direito a algumas fabulações –, há espaço também para comentários furtivos sobre fatos de seu presente cotidiano, com destaque especial para pequenos chistes com questões de linguagem que muitas vezes permitem reconstituir o retrato de uma família abastada na São Paulo dos anos 1940, como na história de Ia, a babá de origem italiana do irmão caçula, Nelson, que o chamava assim: “vem cá, filho dos otros”. 

Se “Vida” vem sem complementos, “Morte e imortalidade” traz no título o oximoro desejado: fala da morte mas também do que não perece. O contrário da morte não é a vida, mas a imortalidade – o que, claro, provoca o riso, pois, e aqui a grande vantagem, ou desvantagem, que têm sobre as crianças e adolescentes os da “quarta idade”: eles sabem que não são imortais. Essa a graça do título e, vá lá, de certa forma, a graça da vida.

Essa última parte do livro oferece pequenos instantâneos e croniquetas do período: o telemarketing que tenta vender caixões, as partidas de futebol reprisadas durante a pandemia, o zoom, a tipologia que Boris cria para ilustrar os modos de enfrentar a Covid (ortodoxos, liberais e negacionistas), as eleições americanas de 2020, a incredulidade com os números da pandemia e com a guinada à direita do país, o almoço com a estudante que lhe prometeu uma ida ao Itaquerão (este, aliás, um episódio que faz lembrar o conselheiro Aires de Machado).

Destaque-se, ainda, o momento em que ele comenta o modismo, ouvido na tevê, de que alguém “fizera a passagem”: “Gostei muito da expressão porque ela minora a passividade atribuída ao morto. Supostamente, o falecido se deixa levar, apertado num caixão, em companhia de flores que ele não escolheu. Quando se diz ‘ele já fez a passagem’, o objeto se transforma em sujeito e comanda a transição. Como o sujeito em princípio tem vida, ele pode num velório pular para fora do caixão, aterrorizando os presentes”. Veja-se que é da vida, e não da morte, que trata a parte que, no entanto, é dedicada a esta última. Qual menino gaiato, Boris trata de despistá-la.

Se em O brilho do bronze, em dado momento, ele dizia “não pretendo deixar este mundo, a não ser forçado”, em “Imortalidade”, o último e saboroso capítulo dessa terceira parte, ele simplesmente dá cabo da morte.

Nessas mil e uma noites de Boris Fausto, a narrativa é a renovada aposta vital no dia seguinte.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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