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Os emaranhados que unem seres humanos às espécies companheiras

Por Flavia Natércia

28 de maio de 2023
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A zoóloga e filósofa Donna Haraway é professora emérita da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, onde atua nos departamentos de História da Consciência, Estudos Feministas, Antropologia e Estudos Ambientais. Em Quando as espécies se encontram (Ubu, 2022), ela faz um mergulho profundo nas relações que estabelecemos com outros organismos, sobretudo com as espécies companheiras, aquelas com as quais “dividimos o pão” – o significado de cum panis em latim é “com pão”. Haraway aborda uma ampla gama de espécies (humanas e não humanas), desde os microrganismos que nos habitam, passando por porquinhos-da-índia, muletas e cadeiras de roda, até tigres e vombates ameaçados de extinção, mas seu interesse especial recai sobre as “criaturas domésticas”: os animais de estimação.

Tudo para mostrar como, em vez de sermos excepcionalmente humanos e apartados das outras espécies por Grandes Divisões, como natureza x cultura, homem x máquina, animal x humano e orgânico x técnico, nós nos coconstituímos em um incessante “devir-com”, em processos de “indução recíproca” com as outras espécies com as quais dividimos nossas jornadas no planeta. Como diz Haraway: “Ser um é sempre devir com muitos”. E mais: “Os parceiros não precedem o encontro; espécies de todos os tipos, vivas ou não, resultam de uma dança de encontros que molda sujeitos e objetos”. E, por isso, devemos tratá-las com respeito e cuidado, agindo com responsabilidade (e não culpa), minimizando a crueldade, proporcionando-lhes um desenvolvimento pleno de seus potenciais e o máximo bem-estar possível, e trabalhando em favor de um “florescimento multiespécies”.

Na primeira parte do livro, intitulada “Jamais fomos humanos” em referência a uma das obras mais conhecidas de Bruno Latour (Jamais fomos modernos), Haraway afirma: “A interdependência das espécies é a regra da mundificação na Terra, um jogo que exige resposta e respeito. É o jogo das espécies companheiras que aprendem a prestar atenção. Pouco fica fora do jogo requerido: certamente não as tecnologias, o comércio, os organismos, as paisagens, os povos e as práticas. Não sou uma pós-humanista: eu sou quem devenho com espécies companheiras, que me fazem e com quem faço uma confusão de categorias na criação de parentes e tipos”.

Os cães, particularmente, emaranham-se em nossas vidas das mais variadas maneiras e não devem ser humanizados como “crianças peludas”. Além de se tornarem membros de famílias multiespécies e serem mercadorias, eles são “biotecnologias” (“fábricas, trabalhadores e produtos”, além de “agentes de produção de conhecimento tecnocientífico”). E atuam como guias, coterapeutas, farejadores de drogas e bombas, auxiliares de caça e de resgate, agentes de limpeza, modelos experimentais, pastores, guardadores de rebanhos, consumidores de produtos e serviços que movimentam um mercado bilionário, atletas em competições, objetos de exposições, matrizes e padreadores.

Na maioria dessas atividades, pessoas e animais devem treinar juntos. Assim, transformam e são transformados, moldam-se e moldam em jogos de cama de gato com uma multiplicidade de seres humanos: as famílias com que vivem, pessoas com deficiência visual ou auditiva e idosos, pacientes e psicólogos, agentes de reabilitação, policiais, pesquisadores e técnicos de laboratório, pastores de rebanho, pecuaristas, veterinários, cinófilos reunidos em clubes e associações, adestradores, criadores e ativistas em prol da saúde e do bem-estar canino, entre outros.

Partindo do amor (“uma sórdida infecção desenvolvimental”) “inesperado e sem limites” que sente por sua cadela Cayenne Pepper, a autora reflete sobre o que considera “fios pegajosos que proliferam a partir desse emaranhado mulher-cadela”. Essas conexões levam, por exemplo, a “fazendas de colonos israelenses nas Colinas de Golã, na Síria, a buldogues franceses em Paris, a projetos prisionais no Centro-Oeste dos Estados Unidos, a análises de investimento da cultura de mercadorias envolvendo cães na internet, a laboratórios de camundongos e projetos de pesquisa genética, a campos de beisebol e agility […]”. Sua participação como condutora nas provas de agility com Cayenne é fundamental para seu pensamento, visto que nelas é preciso haver uma sintonia fina entre as duas participantes – o trabalho em equipe as torna “mais que uma, mas menos que duas”.

A reflexão filosófica de Haraway dialoga com e se alimenta de relatórios, estudos de pós-graduação, livros, capítulos de livros, artigos científicos, e-mails trocados com outros “cachorreiros”, ativistas, pesquisadores, familiares e amigos. Autores como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Karl Marx, Lynn Margulis, Vinciane Despret, Sarah Franklin e Marilyn Strathern são mobilizados e enredados em suas reflexões. Com isso, o livro é prolífico em notas de rodapé que nos levam às fontes de informação e generoso nos agradecimentos aos mais diversos contribuintes.

Quando as espécies se encontram constitui uma continuação das reflexões de Haraway em O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa (Bazar do Tempo, 2021), no qual aborda a complexidade histórica e a implosão da separação entre natureza e cultura nas relações que travamos com os cães, ligados como alteridades significativas, em nome da construção de sociedades mais justas e de um futuro mais vivível. Não se trata de uma leitura fácil, e a autora não oferece conclusões, deixando a quem lê a tarefa de chegar a elas. Por isso mesmo, além de ampliar e transformar nossas visões, Haraway pode modificar nossas atitudes em relação às múltiplas espécies que nos acompanham.

© Ricardo Lima

Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.

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