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Trivialidades de uma amizade nada trivial

Por Pedro Maia Soares

13 de novembro de 2022
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Há 52 anos (de chumbo), eu estava indo embora de São Paulo para os Estados Unidos, Heloisa foi me fazer uma visita de despedida e me deu de presente um cinto marrom, meio acamurçado, muito lindo. Eu elogiei o cinto, mas na grossura típica dos meus 25 anos, disse que mais bonito era o que ela estava usando (um largo, com fivela grande de caubói). No mesmo instante, ela tirou o cinto e me disse para ficar com aquele também. Foi um gesto de desprendimento com mãos de pelica que me marcou para sempre e do qual raramente estive à altura. Depois, durante cinco décadas, foram tantos e tantos atos generosos para comigo – e para tantos(as) outros(as) – que nem todas as minhas lágrimas darão conta.

Há 35 anos, no pior ano de minha vida, eu tinha saído de um casamento e morava num apartamento minúsculo e infernal na confluência da rua dos Pinheiros com a Artur de Azevedo: da janela da sala, eu ouvia o bate-estaca de uma danceteria, e da janela da cozinha, como era apropriado, o som de uma gafieira. Heloisa não se conformou com aquele meu inferno astral e musical e encontrou uma casinha velha para mim, com quintal, jardim, pitangueira, goiabeira, amoreira, numa ruela tranquila onde meus vizinhos eram um músico, um artista plástico, um sócio da livraria francesa, um jurista famoso e um terreno baldio onde eu colhia bananas e abacates (antes que a família do jurista o fizesse). Era relativamente perto de onde ela morava e de vez em quando ela me alegrava com suas visitas. Em termos de moradia – e em alguns outros –, foram meus anos mais felizes em São Paulo. Naquela época, eu havia sido terceirizado – pejotizado, se diria hoje – e Heloisa era minha sócia de faz de conta numa tal de microempresa de “atendimento e contato”, classificação que meu contador arranjou na época para driblar a legislação. Pensando bem, até que esses termos tinham algo a ver com a nossa relação.

Há vinte anos, saí de outro casamento, em outro estado, e voltei de mala e cuia – muitas – para São Paulo. Heloisa me acolheu em sua mais que acolhedora casa da rua Madre Teodora (onde muitos outros encontravam calor, recepção, abrigo e o saudoso Marley). Tratei logo de procurar onde morar e achei um apartamento velho e meio deprimente na Pompeia. Ela foi vê-lo e de novo não se conformou. Dessa vez, achou no mesmo dia um sobradinho de vila simpático, na mesma rua da Pompeia, onde recomecei minha vida e minha sina paulistana.

Pois é, Heloisa tinha um lado insuspeitado e carinhoso de “corretora imobiliária”, posto a serviço dos amigos (há outros exemplos disso). Para ela, não havia limites na amizade solidária e cúmplice. E nesse ponto, não posso deixar de falar do seu grande e talvez único defeito, ao menos do ponto de vista de alguém como eu, que não se distingue propriamente pela generosidade e solidariedade: Heloisa não sabia dizer não. Em conversas íntimas, ela às vezes se queixava do excesso de trabalho – aceitava todos – e de alguns visitantes demasiado “espaçosos” que recebia – recebia todos. E eu, muito solidário, perorava: “Heloisa, precisas aprender a dizer não”. Ela nunca aprendeu. Felizmente.

Pedro Maia Soares, amigo do coração de Heloisa por mais de 50 anos, é tradutor. Foi jornalista, redator, editor e deve seus 15 minutos de fama ao conto Vereda tropical, que deu origem ao curta metragem de mesmo título de Joaquim Pedro de Andrade.

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