Buscar
0

As trilhas do luto

Por Miguel Del Castillo

4 de junho de 2022
Compartilhar

O luto talvez seja um dos grandes temas ou forças motoras da arte. Elabora-se o luto imediatamente ou muito tempo depois, não há receita. E o luto por alguém que se suicidou muitas vezes demanda ainda mais, pois pode implicar sentimentos extremados de incompreensão e impotência.

Serra da Ermida 357 (2016), de Daniela de Moraes, é uma resposta, realizada muitos anos depois, a esse tipo de luto. Todas as imagens do fotolivro são permeadas por um estremecimento, por uma trepidação – dois sinônimos da palavra “frêmito”, cuja definição em dicionário é usada como epígrafe –, pois aqui a autora decide pisar em terreno instável ao percorrer, numa reencenação meio objetiva, meio subjetiva, o caminho que o avô de seu filho fez até se suicidar, em 1990, na serra da Ermida, após o confisco geral ocorrido no Plano Collor.

O livro acontece em três tempos. Primeiro estamos numa trilha na mata, que eventualmente passa por uma construção abandonada. São fotografias atmosféricas, sempre escuras e por vezes borradas, que também se atêm a detalhes de plantas pouco usuais, animais mortos, pequenas ervas. Essa trilha é interrompida (voltará depois) por um “álbum”, assim chamado: de formato menor e papel mais fino, embora conectado ao livro principal, contém fotografias advindas de álbuns de família em que esse homem aparece quando criança e na idade adulta.

São muito significativos os recursos que a autora usa para intervir nessas imagens das quais se apropria. Nas fotos dos anos de infância, cobre com folhas e sementes (que parecem ter saído da própria trilha que há pouco seguíamos) os rostos dos familiares e colegas que aparecem junto dele. Parece sugerir que essa caminhada em direção à decisão de tirar a própria vida acaba por marcar todas as recordações que temos da pessoa, e que inevitavelmente tais memórias passam a vir à nossa mente de uma outra forma, à sombra daquele dia fatídico. A seguir, nas fotos da vida adulta, Moraes recorta todas as outras pessoas, mantendo apenas o homem. Assim, o vemos sorrindo ao segurar no colo um vazio em formato de bebê. Tal operação de esvaziar as imagens e deixá-lo sozinho parece falar, também, do isolamento, da solidão extrema embutida na decisão pelo suicídio.

Voltamos à trilha e percebemos mais claramente que uma criança, provavelmente o neto daquele homem, a percorre também. Esse aparecimento é como um espectro de esperança, um sinal de entrelaçamento afetivo entre gerações que nem chegaram a se conhecer.

Um encarte em papel jornal é o terceiro momento do livro, no qual lemos, sobrepostas de modo a recriar o caos que se instalou na sociedade naquele momento, diversas notícias da imprensa sobre o Plano Collor. Na capa, cheia de ruídos, temos a imagem de Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia daquele governo, e, na contracapa, a do próprio presidente.

Outro fotógrafo brasileiro que aborda a questão do suicídio, em dois fotolivros autopublicados, é André Penteado. O primeiro foi O suicídio do meu pai (2014), trabalho feito de imagens de objetos e lugares com uma conotação brutal, quase agressiva – palavras que podem descrever, também, o impacto que o autor sentiu ao receber por telefone a notícia do suicídio do pai, depois da qual se pôs imediatamente a fotografar. A essas imagens ele une os autorretratos que fez usando as roupas do falecido, apenas duas semanas após o enterro. “Elas ainda tinham fios do seu cabelo e o cheiro de seu perfume”, Penteado escreve. “Foi como se o abraçasse pela última vez.”

Em Não estou sozinho (2016), o título posterior, o autor trabalha com um grupo de pessoas que também tiveram alguém próximo que se matou. Seu característico flash mira os espaços de moradia desses sobreviventes, seu rosto e os objetos que preservam da pessoa morta. As palavras-síntese embaixo de cada fotografia geram um efeito de peso e de densidade entre imagem e texto; por exemplo, fotos de cômodos com seus móveis e objetos vêm acima de palavras como “mãe”, “esposo”, “irmão”, ou então “canivete”, “mandala”, “chapéu”. Ao final, ele reúne os depoimentos que gravou com cada um desses indivíduos.

São três livros duros, que à sua maneira misturam ceticismo e esperança, incompreensão e afeto. Falam de solidão e de pertencimento, de memória e de vazios. Neles, a fotografia surge como resposta incompleta, como elaboração possível diante de uma perda terrível e de uma dor que só é processada ao ser destrinchada, exposta e compartilhada.

*O CVV (Centro de Valorização da Vida) dá apoio emocional gratuitamente, e com total sigilo, por telefone (188), e-mail, chat e voip 24 horas, em todos os dias da semana para quem está em desespero ou pensa em suicídio. Visite https://cvv.org.br

© Carol Ribeiro

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.

Livros relacionados


Outros textos do autor

Através dos espelhos

6 de novembro de 2022
Ver mais

O Brasil do trauma

23 de setembro de 2022
Ver mais

Neurodivergência e afeto em dois fotolivros

28 de agosto de 2022
Ver mais

O Brasil na Rodoviária de Brasília

31 de julho de 2022
Ver mais

Rio Doce, Tchernóbil, Hiroshima: três réquiens visuais

3 de julho de 2022
Ver mais

O familiar, o sagrado e a fotografia como encontro

8 de maio de 2022
Ver mais

Hidrelétricas e ditaduras

3 de abril de 2022
Ver mais

O fermento da memória

30 de janeiro de 2022
Ver mais

O desconcerto do mundo

6 de março de 2022
Ver mais

Crentes, bananas e messias

5 de dezembro de 2021
Ver mais

Fotolivros, true crime e a desconfiança da memória

2 de novembro de 2021
Ver mais