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Neurodivergência e afeto em dois fotolivros

Por Miguel Del Castillo

28 de agosto de 2022
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“Não leve a sério o que ela diz”, diziam à fotógrafa Isabella Lanave na infância, a respeito de sua mãe neurodivergente. É ela mesma que conta, numa entrevista em que explica como a fotografia a ajudou a se reaproximar de sua mãe, permitindo que aprendesse uma forma de lidar melhor com sua bipolaridade e o vaivém das internações. Desde 2012 ela registra esse processo na série em aberto Fátima, mas em determinado momento quis se voltar à experiência de outras pessoas com questões semelhantes. Dessa exploração resultou seu primeiro fotolivro, Leve a sério o que ela diz (2022).

É interessante ter essas informações antes de adentrar o livro, mas é igualmente possível chegar a ele sem saber de nada disso. Nesse caso, talvez aconteça assim: primeiro, o estranhamento de ver seções que em geral encerram os livros surgirem logo no início. Depois, a descoberta de que o sentido de leitura proposto é o oriental, ou seja, da direita para a esquerda. Esse movimento de virar o livro e começar a folheá-lo ao contrário do que estamos acostumados é, saberemos depois, mais uma forma de a autora nos convidar a ver a neurodivergência por outro ângulo.

A seguir, olhamos para baixo (um chão de areia, repleto de pegadas e sombras), para cima (copas de árvores atravessadas por uma borboleta fantasmagórica), para perto (três mãos reunidas), para baixo de novo (folhas secas na terra) e enfim para a frente – um bambuzal em perspectiva, como que convidando à entrada em algo misterioso. Logo depois, nesse mesmo cenário, duas mãos se tocam e vemos uma mulher sentada na relva. Viramos mais uma página e deparamos com uma carta anexada: a primeira personagem do livro, Luana, fala de si, do peso diário do racismo, da maneira como a depressão, a ansiedade e a síndrome do pânico são “doenças que paralisam, calam e tiram nossa humanidade em diversos momentos”, e também das formas que encontrou para contornar isso tudo. Depois, aparece junto à filha, num abraço de olhos fechados que denota sintonia e compreensão.

O procedimento se repetirá e se desdobrará na apresentação das personagens seguintes, quase sempre em conexão com o ambiente natural, e por vezes através de objetos e construções. Não poderíamos intuir antes, mas essa relação com a natureza estava posta desde a primeira imagem do livro, que destoa das demais e que deixei de fora da descrição de propósito: trata-se de uma foto antiga que mostra uma exposição de flores num ambiente fechado e amplo. Essa tensão entre contenção e exuberância surge no livro a todo momento – e se refere não apenas às internações, por vezes relatadas pelos protagonistas, mas a certa obrigação de se fechar, de esconder a própria divergência, de se diminuir ou se ocultar.

Mas há outra leitura a partir dessa imagem: embora estufas de flores apareçam mais de uma vez, o que vemos nas imagens é sobretudo uma natureza cuja exuberância não está contida ou domesticada, seja por estar num local livre, seja por avançar sobre ruínas ou caminhos e estradas há muito abertos. É uma natureza ambivalente, complexa, que por vezes se mostra misteriosa e ameaçadora, asfixiante e delicada, tenebrosa e solar. Aspectos muito bem trabalhados pela autora como metáforas da “loucura” nesse fotolivro que preza pela sinceridade e a abertura ao outro.

É assim que conhecemos Luiz Solda, que visita o hospital psiquiátrico onde passou longos períodos internado e compartilha um poema que mistura sintomas, diagnósticos e nomes de remédios; Victor Hugo Therezo, que cita o próprio diário de internação, quando tudo lhe parecia “um sonho irremediável”; Davi Eustachio, fotografado numa manhã de primavera perto de uma cerejeira; Lúcia Porto, cujo processo de melhora implicou se assumir mulher trans durante a internação; Vino Carvalho, que aparece deitado no terreno do hospital onde antes havia sido um interno, e a seguir com seu filho, e fala de seu diagnóstico de esquizofrenia e de sua demora em perceber a importância dos afetos; Taís Sanson, ao lado da filha em algumas das fotografias mais ternas do livro, seu cabelo branco trançado expressando enorme força; Lucas Fier, que divide com os leitores um desenho seu e que escolheu ser fotografado na passarela em que por algum tempo, desde os dez anos, desejou se suicidar; Xênia Mello, retratada na intimidade do apartamento com sua mãe e seu filho e que escreve uma carta a pessoas que porventura passem por situação semelhante: “Você vai sobreviver, por mais frágil, volátil e insustentável e inacreditável que aparente ser essa sobrevivência”.

Em todos os textos, em todas as imagens, o afeto paira como signo de esperança, tábua de salvação em meio ao caos e às adversidades. Ao fim e ao cabo, é ele que une todas essas histórias e que nos faz, após a leitura, perceber a possibilidade de enxergar a neurodivergência com olhos novos, mais expansivos e menos taxativos.

***

Quem também recorreu ao afeto para falar de “loucura”, muitos anos antes, foi a chilena Paz Errázuriz. No início dos anos 1990, a artista fotografou casais apaixonados que se formaram dentro de um dos mais famosos (não por bons motivos) hospitais psiquiátricos do Chile. Depois de produzir boa parte das imagens, convidou a escritora Diamela Eltit para visitarem juntas o hospital. O infarto da alma (2020), publicado originalmente em 1994, é o fruto dessa parceria, com as imagens de Errázuriz e os textos de Eltit – escritos em diversos gêneros narrativos, do diário de viagem à poesia.

O conjunto fotográfico destoa das tradicionais representações da loucura na história da fotografia, recusa clichês, consegue driblar o sentimentalismo banal (mesmo que seu tema seja casais enamorados) e passa longe de intentos classificatórios. Comove profundamente pela singeleza de gestos misturada à aspereza da condição dos asilados, pelas poses ora calculadas, ora mais espontâneas, pela riqueza emocional sem par que Errázuriz conseguiu captar. Nas palavras de Eltit, são “imagens que comprovam, inclusive para eles próprios [os asilados], que estão vivos, que mesmo depois de tudo conservam um pedacinho de ser”. Esquecidos pela sociedade da época, esses indivíduos ousam se entregar ao amor e, ao fazê-lo, resistem a toda despersonificação que já lhes foi imposta.

Isabella Lanave atualiza de certo modo as questões levantadas pelas chilenas. Também ela inscreve o livro na história manicomial brasileira, ao inserir na sequência fotos do exterior e de objetos do Hospital Colônia de Barbacena (MG), onde ocorreu o “holocausto brasileiro”, assim denominado pelas condições em que os internos eram mantidos. Essa história se junta às muitas histórias individuais contadas pelas fotografias da autora mas também em textos de próprio punho – e, nesse sentido, Leve a sério o que ela diz dá um passo além em relação a O infarto da alma, por considerar importante que as personagens se expressem por si.

Muito mudou em relação ao tratamento e à vivência de pessoas neurodivergentes nos quase trinta anos que separam as publicações. Mas o afeto – abordado em ambos os fotolivros – permanece como algo fundamental.

© Carol Ribeiro

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.

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