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O desconcerto do mundo

Por Miguel Del Castillo

6 de março de 2022
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Um maestro de costas, batuta erguida, conduz uma orquestra invisível num cemitério em que plantas crescem irregular e teimosamente sobre lápides e túmulos: essa talvez seja a imagem mais significativa e conhecida de Viagem pelo fantástico, o inovador e inventivo fotolivro de Boris Kossoy, publicado em 1971 e recentemente reeditado pela IpsisPub em homenagem a seus cinquenta anos. A importância dessa obra, talvez mais bem compreendida anos após seu lançamento, pode ser avaliada pelo caderno que acompanha a nova edição e conta com sólida fortuna crítica.

Kossoy, que viria a se tornar um de nossos grandes historiadores e críticos de fotografia, organizou seu livro como uma sequência de contos fotográficos, dez no total, cada um com sua pequena sequência de imagens a extrair o fantástico do cotidiano por meio do insólito, do obscuro, do cômico e do trágico.

O primeiro deles, “A mulher e a cidade”, abre com a fotomontagem de um corpo feminino nu, sem cabeça, se estendendo como uma montanha por trás da qual se vê a paisagem urbana. A ela segue-se a fotografia de um berço fantasmagórico num quarto cuja janela quadriculada remete à imagem seguinte, talvez um depósito de madeira ou ferragens usadas, e na sequência vemos manequins femininos e infantis que despontam do lado de fora de um galpão com aberturas semelhantes. Pessoas e objetos que revelam seu aspecto fragmentário, ocupando espaços que parecem suspensos no tempo.

Os contos continuam assim, sem textos ou explicações – chegam ao leitor como peças atmosféricas cujo sentido precisa ser interpretado, experimentado, recriado. Em “A estrada de ferro”, à figura de uma noiva sozinha na estação segue-se outra imagem emblemática do livro: essa mesma noiva, agora segurando o véu, resoluta ou desolada, sobe a escadaria de uma passarela que se projeta sobre o trilho do trem. A paisagem urbana dá lugar à rural em “A montanha”, em que o autor nos leva por uma chácara ao pôr em sequência três imagens sem pessoas, e conclui com a foto de uma mulher de luvas, com uma gaiola vazia nas mãos, a encarar desafiadoramente o observador – o fotógrafo, o leitor.

A referência ao fantástico na literatura é clara, mas gostaria de dar mais uma volta nesse parafuso e associar o fantástico de Boris Kossoy àquele presente na obra do uruguaio Felisberto Hernández (1902-1964), que escreveu seus principais livros entre as décadas de 1940 e 1960. Em Felisberto, o fantástico não é espetacular, exibido: surge como atmosfera, ou num objeto deslocado que o narrador dota de novos sentidos; trata-se, melhor dizendo, de uma “peculiar estranheza”, conforme nota Davi Arrigucci Jr. no posfácio de sua seleta de contos do autor, O cavalo perdido e outras histórias. Uma estranheza insidiosa e crescente, cujo impacto se faz sentir desde o começo por ser “produzida a partir do deslocamento de detalhes […] para uma zona de penumbra imprecisa, em que o caráter anômalo não dá de imediato na vista, mas já exprime o processo geral de transformação pelo qual o narrador opera as mudanças mais radicais e reveladoras desse mundo extravagante”, escreve o crítico.

São esquisitices como a do jovem que erotiza as pernas dos móveis e os retratos que pousam no aparador em “O cavalo perdido”, pensamentos que se confundem com sua atração pela professora de piano. Tal premissa me remete diretamente ao segundo conto de Viagem pelo fantástico, “Cenas num parque”, em que imagens de uma mulher nua posando para a câmera se alternam com as de uma escultura que a ela se assemelha, e de novo um busto de manequim feminino, dessa vez nos braços de um homem que se cobre com o jornal e cujo olhar dá a entender que foi surpreendido num ato escuso. Kossoy parece falar de realidade e representação, e das inter-relações, inclusive eróticas, entre ambas. Aliás, poderíamos dizer que nos dois autores há um erotismo à flor da pele que impregna objetos e pessoas, misturado a uma “sensação de vazio e perplexidade”, como anota o crítico Jorge Monteleone ao comentar as narrativas de Felisberto.

Arrigucci, escrevendo ainda sobre o uruguaio, diz uma frase que também poderia se referir a Viagem pelo fantástico: “A metamorfose e o sonho são componentes fundamentais da matéria de que são feitas as histórias, nas quais, por outro lado, penetra sempre um desejo de lucidez, uma consciência crítica, que pode ser perversa e dolorosa, porque paga o preço de estar metida nesse mundo”.

Um dos tons mais altos que o fantástico atinge em O cavalo perdido e outras histórias se encontra em “O lanterninha”. Um homem de repente percebe que enxerga no escuro e, ao se olhar no espelho, ao ver que seus olhos brilham, acaba por desmaiar: “E quando despertei minha cabeça estava debaixo da cama, e eu via as ferragens como se estivesse debaixo de uma ponte. Jurei nunca mais olhar aquela minha cara e aqueles olhos do outro mundo. Eram de uma cor amarelo-esverdeada que brilhava como o triunfo de uma doença desconhecida; os olhos eram grandes círculos, e o rosto estava dividido em pedaços que ninguém poderia juntar nem compreender”. Da mesma maneira, no livro de Kossoy o ápice desse fantástico sutil acontece em “Cenas numa casa”: um apartamento com “vagas para moças” recebe a visita de um homem suspeito, que encara a câmera do canto da sala, e na página seguinte vemos, em outra quina e diante de uma mulher deitada e despida, uma figura macabra, alguém que traja uma fantasia de animal com chifres de touro.

Ou talvez esse clímax fantástico esteja mesmo contido na imagem da orquestra invisível no cemitério, que citei logo no início. Retomo-a agora ao pensar que a figura do maestro se confunde à do próprio Kossoy narrador, e também, extrapolando, à de Felisberto Hernández, que, por sua vez, foi pianista profissional: dois autores a reger esses concertos fantásticos de câmara, feitos de personagens enigmáticos, histórias e objetos metamorfoseantes que acabam por nos legar uma visão mais arguta e menos óbvia de nosso mundo desconcertado.

© Carol Ribeiro

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.

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