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De como o pecado, além de todas as suas outras virtudes, ainda produz bons livros

Por Gustavo Pacheco

4 de outubro de 2023
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Em março de 1669, a nau Santa Catarina atracava na Baía de Todos os Santos vinda de Lisboa. Entre os passageiros, estava o violeiro Luiz Delgado, condenado pela Santa Inquisição à pena de dez anos de degredo nas selvagens terras do Brasil. Que crime tão atroz poderia ter motivado tal castigo? A acusação dos inquisidores era a de que Delgado tinha “introduzido seu membro desonesto no vaso natural do rapazola Brás, derramando semente em seu interior”.

Luiz Delgado existiu realmente, é um personagem histórico cuja trajetória nos foi revelada pelas imprescindíveis pesquisas do antropólogo, historiador e ativista Luiz Mott. Mas a vida atribulada de Delgado estava reservada apenas aos leitores de trabalhos acadêmicos, até que Alexandre Vidal Porto resolveu recriá-la em chave ficcional em Sodomita (Companhia das Letras, 2023), seu quarto romance, recém-publicado. Ao fazer isso, o autor nos presta um duplo serviço: por um lado, enriquece nossa visão de nós mesmos ao recuperar uma das tantas figuras interessantíssimas que merecem ser incorporadas ao imaginário coletivo e ao panteão ficcional do Brasil; por outro lado, ao decidir se embrenhar em território novo e arriscado, produz aquele que é o seu melhor livro até agora.

Os romances anteriores de Alexandre Vidal Porto apresentavam personagens contemporâneos em cenários contemporâneos, em tramas construídas com linguagem límpida e certeira. Ao escrever um livro que se passa no século XVII, ele se expõe a todos os desafios adicionais envolvidos na construção de um romance histórico, desde a enorme quantidade de pesquisa necessária para dar verossimilhança à narrativa até as armadilhas do idioma usado por personagens de mais de 300 anos atrás. Não são tarefas nada fáceis, mas ele as executa com notável habilidade e fluidez, daí resultando um romance consistente, envolvente e muito saboroso, dividido em capítulos com títulos como “De como Luiz Delgado segue para seu degredo, que, ao vê-lo, lhe sorri” ou “De como a virtude persegue o pecado onde quer que este se instale”.

Boa parte da atração do livro está no próprio Luiz Delgado, a quem acompanhamos enquanto reconstrói sua vida na Salvador seiscentista e tenta, em vão, resistir às “atrações pecaminosas”, pois afinal “é no calor do sangue circulante que reside e se transporta o pecado adormecido em cada um de nós, bastando um toque para despertá-lo”. Nas suas fraquezas e virtudes, nas suas tão humanas contradições e na sua determinação de buscar a própria felicidade mesmo que para isso tenha que enfrentar a ira de Deus e dos homens, ele não poderia estar mais próximo de nós e do nosso tempo.

Contudo, o livro também nos atrai por outra razão: seu estilo, que se aproxima mas também se afasta das obras anteriores do autor. A linguagem continua límpida e certeira, porém a forma é bem diferente: sem ter a pretensão de reproduzir fielmente o português arcaico, combina em justa medida a estranheza de palavras e expressões desusadas com a fluidez e a musicalidade do português contemporâneo, como nesse trecho: “Desde a última festa de Santa Clara dos Enfermos, quando se dera conta da presença do cadete Miguel que se banhava distraído no ribeirão do peixe, pondo grande atenção em sua nudez, Luiz Delgado se entregava sem culpa a maus tocamentos, mais de uma vez por noite, de forma que, no horário das Matinas, já se lhe havia esgotado a semente de homem aos bagos”. Ou nesse outro: “O coração de Delgado estava todo possuído pelas trevas daquela vontade inimiga do gênero humano. Segundo a Sagrada Santa Igreja, não haveria nada mais desprezível e deletério. No entanto, para Delgado e seu cadete, tal referida possessão só trazia deleite — que apenas aumentava com os acometimentos desonestos que mantinham, com o ajuntamento dos membros viris pela frente e por detrás”.

A escritora inglesa Hillary Mantel disse uma vez que resolveu se dedicar à ficção histórica porque achava que quase tudo que se produzia nessa área era “deficiente em informação, carente de técnica e vazio de afeto”. Pois tenho certeza que ela teria a impressão oposta se tivesse lido Sodomita.

P.S. A sodomia só deixou de ser crime no Brasil em 1830, quase duzentos anos depois dos eventos narrados em Sodomita. Em Portugal, a descriminalização da homossexualidade só aconteceu em… 1982.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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