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Quadros de uma exposição

Por Gustavo Pacheco

30 de julho de 2023
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O escritor W. G. Sebald costumava dizer a seus alunos: “Nada que você inventar será tão horripilante quanto as coisas que as pessoas contarem a você”. Lembrei dessa frase mais de uma vez enquanto lia Uma exposição (Relicário, 2021), romance de Ieda Magri. A narradora do livro é uma mulher de quarenta anos que volta ao lugar em que nasceu e cresceu, uma pequena cidade do interior de Santa Catarina, para participar de uma grande festa familiar. No centro dessa festa, está a matança de um boi escolhido e engordado especialmente para a ocasião.

Já imagino o revirar de olhos de muitos sensíveis leitores e leitoras urbanos, que não cresceram na roça e tapam os olhos quando veem cenas sangrentas nos filmes e séries, e para quem um livro que gira em torno da matança de um boi pode soar como algo sem qualquer interesse, ou desagradável, ou até mesmo de mau gosto. A esses leitores e leitoras, eu diria: 1) que bom que na literatura brasileira contemporânea há gente que não está preocupada em escrever algo agradável ou de bom gosto, e sim em mergulhar nas entranhas de si mesmo e voltar para nos contar o que viu, e 2) vocês não sabem o que estão perdendo.

Ao longo de Uma exposição, acompanhamos em detalhe o abate, o processamento e o consumo do boi 45, “o mais simpático, o mais gordo, o mais bonito”, mas essa narrativa não teria nada de mais se não fosse acompanhada pelo exame e autoexame rigorosos que a narradora faz da paisagem, da infância, da violência, do amor, da escrita, da condição humana. Um breve exemplo: “O corpo da minha mãe anda por aí e respira, como respirava e andava por aí o boi 45, mas nossa relação agora é a mesma do boi 45 e eu. Cada uma na sua fazenda, esperando seu dia, separadamente, olhando o que acontece ao redor com o mesmo espanto, com uma incompreensão bovina”.

A certa altura, a narradora assiste a uma encenação de seus textos ao lado de duas amigas. Ao final do espetáculo, constrangida, uma das amigas diz: “Sei lá, é muita exposição”. Pois é justamente essa exposição impiedosa de si mesma que dá sentido ao livro e desperta o interesse de quem lê. E isso vale mais ainda para o romance seguinte de Ieda Magri, Um crime bárbaro (Autêntica, 2022).

O mote desse segundo livro é o brutal assassinato de uma menina de treze anos, em 1981, na mesma zona rural de Santa Catarina que é cenário e ao mesmo tempo personagem de Uma exposição. É inevitável enxergar fortes conexões entre os dois livros – e para mim foi inevitável, também, lembrar mais uma vez da frase de W. G. Sebald no começo desta coluna. Mais uma vez, estamos diante de uma ficção que tira boa parte de sua força de coisas que a imaginação tem dificuldade de superar.

Em Um crime bárbaro, uma narradora em tudo semelhante à do livro anterior retorna mais uma vez à paisagem de sua infância para lidar com questões de vida e morte; mas agora a narrativa vai mais fundo na exploração das memórias e das misérias humanas, ancorada numa investigação detetivesca que não deixa nada a dever aos bons romances policiais.

Um crime bárbaro é excelente, mas me pareceu ainda melhor por ter sido lido logo depois de Uma exposição. Já tendo sido apresentados à atmosfera emocional do primeiro romance, tiramos mais proveito da forma como essa mesma atmosfera é aprofundada e dissecada no segundo, e sentimos aquela sensação rara de estar voltando a um território ficcional próprio, com suas próprias regras, mitos, personagens e idiossincrasias. Um território que, suspeito, apenas começa a ser explorado por Ieda Magri, e ela nos fará um grande favor se continuar a agregar quadros a essa exposição.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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