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Um balaio de sonhos

Por Gustavo Pacheco

9 de abril de 2023
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Num de seus textos mais conhecidos, “A ficção como cesto”, Ursula K. LeGuin argumenta que o primeiro artefato cultural criado pelo ser humano provavelmente não foi uma faca, um machado ou uma lança, e sim um cesto, um balaio ou algo parecido para recolher frutas, castanhas e outros alimentos. Com as ferramentas de caça, nasceram histórias cheia de ação, violência e heróis; mas, ao lado dessa tradição narrativa que se tornou dominante, existe uma outra tradição, mais sutil e menos linear, que podemos associar ao cesto e ao ato cotidiano de preenchê-lo com as coisas mais diversas. As histórias que nascem daí, diz LeGuin, estão mais interessadas no “processo contínuo da vida” do que nos conflitos; em vez de heróis, elas contêm pessoas. São histórias fragmentárias e estranhas como a própria vida – histórias “cheias de começos sem fins, de iniciações, de perdas, de transformações e traduções, e de muito mais truques que conflitos, muito menos triunfos do que armadilhas e ilusões”.

O texto de LeGuin é instigante por vários motivos, mas o principal deles, na minha opinião, é o fato de que nos faz imaginar maneiras menos comuns não apenas de contar histórias, mas também de lê-las. Em outras palavras, reconhecer a existência da “ficção como cesto” significa ser mais generoso e receptivo a histórias que não se encaixam nas matrizes narrativas a que estamos mais acostumados.

Por que estou dizendo tudo isso? Porque essas ideias talvez ajudem a explicar a força de O manto da noite (2022), o sexto e mais recente romance de Carola Saavedra, um livro tão belo quanto esquisito. Aqui, a autora amplia e aprofunda o movimento iniciado em seu (ótimo) romance anterior, Com armas sonolentas (2018), em que começou a explorar formas narrativas mais livres do que o realismo que marcava sua escrita até então. A ruptura com a “primazia da razão”, como Saavedra mencionou em uma entrevista, levou a uma narrativa misteriosa, onírica, enigmática – mas nem por isso chata ou inacessível.

O manto da noite é um cesto que contém muitas histórias, memórias e sonhos do e no continente latino-americano, narrados em seis partes bem diferentes em forma e conteúdo, que por sua vez incluem elementos tão insólitos (e só aparentemente díspares) quanto uma cordilheira que fala, uma invasão de fungos extraterrestes e personagens de Shakespeare numa caravela à deriva. Há muitas maneiras de ler esse balaio, mas talvez a forma menos interessante seja querer “entender” tudo o que está acontecendo. Não precisamos “entender” completamente um sonho para nos sentirmos tocados e maravilhados com ele, e o mesmo acontece com alguns livros. Parafraseando o que disse uma vez o escritor argentino Alan Pauls, o “entendimento” de um livro é um critério muito pobre para avaliar o seu valor, por uma razão muito simples: o leitor não pede ao autor que lhe entregue algo “entendível”. O que o leitor pede ao autor é o seguinte: me drogue

E como O manto da noite consegue drogar o leitor? Não tenho certeza, mas suspeito que uma pista importante esteja na linguagem. Outro escritor argentino, César Aira, costuma dizer que, justamente porque sua imaginação é exuberante, ele precisa usar uma linguagem cristalina: “Se eu escrevesse de forma barroca, o barroquismo da imaginação e o barroquismo da escrita formariam uma espécie de massa incompreensível, e por isso preciso da prosa mais clara possível, para poder deixar voar a imaginação”. É mais ou menos o que acontece aqui: a linguagem direta e sem afetação serve de veículo ideal e ao mesmo tempo de contraponto para uma narrativa que é excêntrica no melhor sentido da palavra.

É estranho? É. Mas é uma estranheza fascinante e nem um pouco gratuita pois, para citar novamente Ursula K. LeGuin, “é uma estranha realidade”. E quem não tiver medo nem preguiça de explorar esse estranho balaio será fartamente recompensado.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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