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Um contista valente

Por Gustavo Pacheco

7 de maio de 2023
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Rua Maravilha Tristeza (Jabuticaba, 2022) tem apenas 96 páginas, mede 18 centímetros de altura e 11 de largura, e pesa uns 150 gramas. Dá para levar no bolso do casaco sem fazer volume. São apenas cinco histórias, que podem ser lidas de um estirão só, usando apenas uma fração do tempo médio que os brasileiros dedicam ao celular a cada dia (5,4 horas). Em suma, um livro breve formado por narrativas breves. E, no entanto, quanta coisa cabe dentro dele!

Qualquer pessoa que tenha curiosidade em entender como um conto funciona vai inevitavelmente esbarrar em algum momento com a manjada (mas nem por isso menos perceptiva) “teoria do iceberg” de Ernest Hemingway, que diz que, quando um escritor sabe o que está fazendo, pode omitir muitas coisas e ainda assim o leitor sentirá essas coisas como se estivessem explícitas no texto. “A dignidade de movimento de um iceberg se deve ao fato de apenas um oitavo dele estar acima da água”, diz Hemingway, comparando à parte submersa aquilo que se omite numa história.

Frederico Klumb sabe o que está fazendo. Há muita coisa submersa em Rua Maravilha Tristeza, e isso é o que torna o livro bem maior, mais amplo e mais profundo do que poderíamos supor pelo seu tamanho reduzido. Mas a melhor imagem para representar o livro talvez não seja um iceberg, e sim um vulcão semiativo: vemos aqui e ali indícios de calamidade, como se esse vulcão estivesse soltando pequenas quantidades de cinzas e gases, mas sentimos que as verdadeiras catástrofes estão no subsolo, só podemos adivinhá-las, e isso nos deixa curiosos e também um pouco aliviados por não estarmos presentes quando a erupção acontecer.

Os cinco contos do livro tiram sua força do contraste entre esse magma que corre por debaixo das histórias e a forma objetiva e realista como elas são narradas. Não há pirotecnia, não há truques, não há cacoetes, não há atalhos: há pessoas que contam histórias umas às outras, com a mesma intimidade desarmada com que contamos nossas histórias a alguém para tentar entender ou, pelo menos, assimilar de alguma forma o que nos aconteceu.

“Eu e meu pai sentados no restaurante de um hotel na Bahia. Ele bebeu três camparis, e quando isso acontece, fala sem parar. Mas desta vez você não conhece a história, anuncia meu pai.” Assim começa “Prólogo”, o primeiro conto, que de certa forma dita o tom de todo o livro: o tom de uma conversa franca e sem pressa, que não quer chegar a lugar nenhum pois é o próprio lugar. Ou seja, praticamente o oposto do tom afobado, desatento, superficial e entrecortado com que nos comunicamos hoje na maior parte do tempo. Como na canção de Anelis Assumpção, os personagens de Rua Maravilha Tristeza estão aqui para “jogar conversa dentro”.

Tão manjado e tão perceptivo quanto a teoria do iceberg é o conselho de escrita que Hemingway dava a si mesmo: “Tudo que você precisa fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que você souber”. Pois nos melhores momentos de Rua Maravilha Tristeza a linguagem exala essa coisa rara e indispensável que, na falta de uma palavra melhor, podemos chamar de verdade. Isso fica mais evidente no conto que dá título ao livro e que é uma espécie de núcleo em torno do qual as outras narrativas parecem gravitar. É difícil acompanhar o calvário de Vinicius, o jovem internado numa clínica de desintoxicação, sem tropeçar o tempo todo nessa verdade – e sem ser conquistado por ela.

Tanto a maturidade narrativa quanto a linguagem firme e sem rodeios de Rua Maravilha Tristeza remetem a alguns grandes expoentes do conto, em particular Roberto Bolaño, que por sinal é citado pelo personagem Vinicius. Embora não tenha formulado teorias como Hemingway, Bolaño nos deixou um texto curto e saboroso chamado “Conselhos sobre a arte de escrever contos”, um dos quais diz o seguinte: “Um contista deve ser valente. É triste reconhecer isso, mas é assim”. Mas não nos deveria deixar tristes, e sim maravilhados, que existam contistas valentes como Frederico Klumb.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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