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A força dos imperfeitos

Por Stephanie Borges

19 de março de 2023
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A despedida em grande estilo de um dos grandes artistas dos quadrinhos, recebendo o prêmio Eisner em três categorias. Uma dura crítica ao patriotismo e à guerra que levou mais de trinta anos para ficar pronta. Além de tudo isso, Monstros (Todavia, 2022, tradução de Érico Assis) faz uma releitura de histórias de super-heróis e questiona até que ponto essas narrativas reforçam uma visão simplista da sociedade.

O britânico Barry Windsor-Smith (1949) começou a trabalhar para a Marvel aos 19 anos, e ao longo de sua carreira foi responsável pelas artes de Conan, O Bárbaro e X-Men, entre outros. Com o tempo, passou a se dedicar a projetos autorais, mas nem por isso sua relação com a indústria mainstream e seu repertório de cenas de ação deixam de ressoar no roteiro e nos desenhos dessa graphic novel.

A história de Monstros começa em 1964, quando o órfão Bobby Bailey, cego de um olho, tem seu alistamento negado. O sargento Elias, porém, vislumbra no jovem a oportunidade de o Exército americano usá-lo como cobaia no projeto Prometheus. O misterioso experimento das Forças Armadas dos EUA é comandado por um coronel que, durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhara em laboratórios nazistas para a criação de um supersoldado.

Bailey fica extremamente musculoso e deformado, a ponto de os responsáveis pelo projeto julgarem-no uma aberração. Decidem exterminá-lo, mas o jovem consegue fugir. A perseguição se transforma numa operação para apagar as evidências de que os militares realizavam experiências nazistas.

A trama ecoa a premissa de Capitão América e Wolverine, enquanto as mudanças físicas inesperadas dialogam com as origens de personagens como o Incrível Hulk e o Coisa, do Quarteto Fantástico. A redução da Segunda Guerra Mundial a uma disputa entre os Estados Unidos e os nazistas, muito comum nas histórias de super-heróis, também é parte do contexto. Aos poucos, porém, a história de Bobby Bailey se revela bem mais complexa, e a arte do autor, cheia de texturas, luzes e sombras, convida os leitores a uma leitura mais demorada.

Mais do que um jovem desfigurado, Bailey é vítima de uma série de mentiras, violências e traumas ligados à guerra. Conforme o roteiro não linear recua no tempo, descobrimos que a família do protagonista foi afetada pela participação de seu pai, Tom, na Segunda Guerra Mundial.

Um dos momentos mais sensíveis da HQ é um longo flashback no qual as memórias de infância do protagonista são intercaladas com trechos do diário de sua mãe, Janet. O relato íntimo se contrapõe às lembranças do protagonista, revelando dinâmica abusiva estabelecida entre a família após o retorno do pai, que, devido aos traumas de guerra, se torna um alcoólatra agressivo.

Os diários de Janet mostram como o silêncio e violência corroem as relações familiares. A tensão é crescente, mas a vulnerabilidade da mãe e do menino nos mantém curiosos, mesmo sabendo o desfecho desse drama familiar. Embora entendamos por que Tom, de vítima, passou a carrasco, o fato de segredos de guerra serem tratados como prioridade em relação a vidas civis nos leva a refletir sobre monstros criados e abandonados à própria sorte.

A HQ desassocia a monstruosidade e a aparência física, em um diálogo com Frankenstein ou Prometeu Moderno, de Mary Shelley, referência reiterada pela caçada a uma criatura solitária e desamparada que inspira um medo irracional. Windsor-Smith relaciona os monstros à crueldade e à falta de ética que permeiam as sociedades que mantêm complexos bélicos industriais.

Ao longo da leitura, é possível se perguntar se o roubo de arquivos de um laboratório nazista por soldados americanos equipara a “terra da liberdade” ao Terceiro Reich, uma vez que ambos cultivam ideias racistas e eugenistas. As cenas da guerra deixam claro como, em nome de um suposto ideal de progresso e aperfeiçoamento, a vida das pessoas pouco importa.

É na construção de uma rede de relações humanas, nos impactos inesperados que as pessoas têm nas vidas umas das outras, que se revela a beleza da narrativa. O sargento Elias McFarland, por exemplo, responsável pela participação do jovem no experimento do Exército, cai em depressão e enfrenta questionamentos sobre a fé, o destino e as conexões entre seres humanos. O agente Jack e o governador Powel tentam usar o poder de que dispõem para dificultar decisões militares que provocariam mais violência.

Na perspectiva do autor, os monstros são não aqueles de aspecto assustador, mas os que exercem a autoridade com violência e confiam na impunidade para não lidar com as consequências de seus atos. O pai e marido abusivo, o major que se empenha em caçar uma cobaia e o oficial nazista determinado a sobreviver a qualquer custo não têm limites. O sofrimento ou a morte alheia lhes é indiferente, mero efeito colateral.

No entanto, se, por um lado, Bailey consegue fugir com o auxílio daqueles que erraram com ele, por outro, o autor não oferece redenção a esses personagens, mas lhes dá a chance de reconhecer os próprios erros e tentar reparar injustiças — um traço que distingue os homens dos monstros.

Síntese dos muitos recursos narrativos e artísticos de Barry Windsor-Smith, Monstros é também uma leitura que se destina não apenas aos fãs de seu trabalho. Quem deseja conhecer histórias em quadrinhos para além de histórias de super-heróis encontrará em Monstros a sutileza da ficção que contempla a vida de pessoas comuns e um pouco do sobrenatural e do mistério como parte inexplicável da experiência humana. As elaboradas artes em nanquim impressionam mas não nos distraem a ponto de esquecer de prestar atenção para além das aparências.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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