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Invasões, guerras e feitiçaria

Por Stephanie Borges

15 de outubro de 2023
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Contatos entre brancos e povos indígenas em diversos momentos da história do Brasil são o elo das nove HQs reunidas em A alma que caiu do corpo, de André Toral (Veneta, 2020). Produzidas entre 1991 e 2010, elas misturam pesquisa histórica, ficção e o olhar do pesquisador, que trabalhou por mais de trinta anos com povos originários e é mestre em antropologia.

Dos primeiros portugueses degredados no Novo Mundo às invasões de terra para exploração de madeira ilegal nos anos 1970, as histórias breves são apresentadas com uma visão crítica da violência colonial e da exploração desenfreada dos recursos naturais. Toral, ainda que branco, constrói personagens indígenas que desafiam estereótipos, divergem entre si e expressam desgosto por serem obrigados a ter contato com os brancos.

Os narradores deixam claro como a visão de mundo e a religiosidade dos povos originários divergem daquelas da cultura ocidental e não estabelecem hierarquia de saberes. As referências à feitiçaria e a importância dos xamãs surgem em diálogos corriqueiros, uma vez que os personagens interpretam eventos como as epidemias e a invasão de terras como desequilíbrios entre o mundo material e espiritual.

HQs como “O tradutor”, “O brasileiro”, “A mulher do morto”, “A imagem de Jim Hendricks” e “O negócio do sertão” são baseadas em pesquisa histórica. Enquanto “O brasileiro” é narrada em off pelo protagonista não nomeado, as demais são acompanhadas por um narrador onisciente e irônico, que soa muito contemporâneo ao fazer referências ao Mal de Alzheimer numa história que se passa em 1533. Mas o anacronismo não prejudica o roteiro. Diante da seriedade de temas como a escravização e a imposição de um modo de vida cristão, narradores críticos aos invasores servem como um contraponto bem-humorado. A ingenuidade ou arrogância dos brancos é destacada, em um lembrete de que a história oficial nos apresentou uma versão unilateral dos acontecimentos.

Em “O brasileiro”, um francês é quem recebe uma missão ingrata: viajar para o Brasil a fim de matar o filho bastardo de seu senhor, um pastor calvinista que integrou a expedição Nicolas de Villegagnon e passou a viver entre os tupinambás. Recebido com cordialidade pelos indígenas e pelos franceses que viviam na aldeia, o assassino manifesta sintomas de uma doença misteriosa e é muito bem tratado, o que dificulta sua tarefa. Como o medo de ignorar os caprichos do senhor é maior que a gratidão por quem o salvou, ele cumpre a missão que lhe fora designada e precisa encarar os tupinambás.

Toral também alude a disputas internas entre os habitantes dessas terras antes da consolidação do domínio português. Em “A mulher do morto”, um marinheiro normando desembarca em meio a uma guerra entre povos indígenas e é capturado por tupiniquins que querem vingar a morte de um jovem assassinado por conterrâneos do marinheiro. O protagonista espera ser executado a golpes de borduna, mas é levado à casa da família enlutada. É aceito como um filho, passa a trabalhar na roça e se aproxima da jovem viúva, que se torna sua companheira. O estrangeiro acredita que seus pedidos de clemência foram atendidos, até a esposa lhe dizer que só estavam esperando a colheita do milho para concluir a vingança.

A curta HQ que dá título ao livro, “A alma que caiu do corpo”, apresenta o quadrinista como personagem e tem sua continuação em “O Iãgre”, que encerra o volume. Na edição, as narrativas estão separadas e a relação entre elas só é explicitada nas notas do autor no final do livro. Em “A alma…”, Toral reproduz o relato de uma mãe – o filho dela teria caído num córrego, e, como a alma das crianças ainda não está bem presa à matéria, saíra do corpo. Foi necessário procurar um curador que recebe a ajuda de espíritos para localizar e devolver a alma da criança. O desfecho é o pesquisador partindo numa viagem para conhecer o homem capaz de realizar esse tipo de cura. Em “O Iãgre”, o autor conta como Lauriano Kefeg, ex-cacique de uma aldeia em Santa Catarina, foi salvo de uma emboscada e desde então passou a receber a orientação de um espírito para usar ervas, tratar alcoolismo, desfazer feitiços e sanar a perda da alma.

“O negócio do sertão” trata da expedição que, por volta de 1653, Antônio Gonzalez organizou para capturar indígenas e forçá-los a trabalhar na roça, nos arredores da Vila de São Paulo. Toral destaca como as “entradas” nos territórios indígenas eram consideradas um negócio lucrativo e recebiam o investimento do governo local, pois a exploração da mão de obra escravizada garantia o retorno dos empréstimos. Gonzalez contrata como guia o sertanista Rodrigo Rodovalho, e eles negociam prisioneiros de guerra com os caiapós, capturam uma família inteira e parecem bem-sucedidos em sua empreitada, até que são surpreendidos pelos ataques de um feiticeiro. Quando Rodovalho aparece morto, Gonzalez decide retornar para São Paulo e é emboscado pelos caiapós.

“O caso do Xis” também mistura disputas de território, táticas de guerra e xamanismo como elemento de resistência de um povo atacado por grileiros empenhados em explorar madeira ilegalmente. Encorajados por um padre a reivindicar seus direitos, os indígenas encontram nos saberes antigos a coragem para enfrentar os invasores e lutar pela demarcação. A garantia das terras, porém, não é a solução de todos os conflitos, e disputas pela liderança e a desconfiança selam o destino de um de seus heróis de guerra.

Nem todas as narrativas de Toral têm um clímax ou desfecho convencional. Geralmente as que não são elaboradas a partir da pesquisa histórica são relatos incompletos de encontros, passagens por aldeias ou reproduzem histórias contadas ao autor, o que pode provocar um estranhamento. Entretanto, como A alma que caiu do corpo tenta se aproximar do ponto de vista dos povos originários no encontro com os brancos, faz sentido que os quadrinhos não se comprometam totalmente com a lógica ocidental de contar histórias. Ao final da leitura, percebemos que mais HQs baseadas em cosmovisões, releituras de crônicas coloniais e modos de vida indígenas são muito bem-vindas.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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