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A crise desenhada

Por Stephanie Borges

26 de setembro de 2023
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Embora ondas de calor, enchentes e tempestades tenham se tornado mais frequentes nos últimos anos, compreender a gravidade da emergência climática pode ser complexo, uma vez que a interferência humana no meio ambiente está relacionada a aspectos tanto coletivos quanto individuais e em uma ampla escala. O aumento da emissão de gases de efeito estufa no planeta está ligado às matrizes energéticas adotadas por diversos países, à falta de política de mobilidade urbana e a hábitos que provocam impacto na indústria agropecuária, como o consumo diário de carne.

Em uma empreitada de divulgação científica em quadrinhos, O mundo sem fim, parceria entre o desenhista e roteirista Christophe Blain e o escritor Jean-Marc Jancovici, cofundador da Carbone4 – empresa de pesquisa e consultoria em questões de mudança climática – e professor na Mines Paris Tech, contextualiza, a partir de perspectivas tecnológicas, políticas e econômicas, como chegamos a um cenário tão desafiador.

Estruturada em um longo diálogo no qual os desenhos possibilitam viagens no tempo, metáforas visuais, infográficos de fenômenos físicos para a produção de energia e a ilustração de cenas fantásticas como uma conversa com a Mãe Natureza, a HQ evita uma lógica de culpabilização de indivíduos e procura conscientizar os leitores de que a realidade é extremamente preocupante, mas não apocalíptica, caso tomemos providências.

Blain é um leigo tentando compreender por que governantes mantiveram a dependência econômica de energias fósseis nos últimos trinta anos embora soubessem dos riscos do aquecimento global. Jancovici tenta explicar como o conforto alcançado por parte da humanidade graças à criação de toda espécie de máquinas, dos tratores aos eletrodomésticos, influenciou uma percepção coletiva de que a abundância e o crescimento constantes seriam um futuro possível, apesar das evidências contrárias.

É importante ressaltar como o debate entre os dois leva em conta especialmente o contexto francês, com alguns exemplos do Reino Unido e da Alemanha. Quando Jancovici menciona um período de abundância da produção petrolífera no qual políticas de bem-estar social tiveram reflexos na melhora da qualidade de vida, a conversa entre os dois soa como se não vivêssemos em um mundo em que grande parte das pessoas não conta nem mesmo com saneamento básico. A leitura de O mundo sem fim (Nemo, 2023, tradução de Sheibe e Castro) é esclarecedora; contudo, há momentos em que os autores parecem esquecer que o contexto francês é bem específico. O conforto do qual seus conterrâneos não querem abrir mão não esteve disponível às populações dos países em desenvolvimento, que já vivem as consequências do aquecimento global.

Como parte da responsabilidade pela emergência climática está associada ao negacionismo de governantes, à falta de investimentos de longo prazo para diversificar matrizes energéticas, a pouco investimentos estatais em pesquisa e desenvolvimento de energias de baixo impacto no ambiente, é difícil não considerar o peso das escolhas das lideranças políticas nas últimas décadas. E ainda que ele diga que muitas vezes os Estados agem em favor de corporações, sem priorizar o bem coletivo, sua postura é cautelosa.

Um dos aspectos surpreendentes da HQ é mostrar como as energias consideradas limpas e renováveis também têm impacto ambiental. A produção de placas de captação de energia solar demanda metais, as turbinas de energia eólica são feitas de derivados do petróleo, sua instalação requer espaço e afeta a produção agrícola no entorno. Embora sejam menos poluentes, não há nenhuma energia completamente limpa. É necessário compreender as vantagens e os desafios que cada uma traz. A proposta de Jancovici é a convivência de vários modos de produção de energia, inclusive o nuclear, como forma de diminuir a dependência de combustíveis fósseis e ganhar tempo para encontrar outros modelos menos agressivos para o planeta.

Após uma longa análise de como as economias se tornaram dependentes do petróleo, do gás de carvão, depois de uma explicação de como os gases de efeito estufa atuam e quais medidas podem ser tomadas para reduzir as emissões, os autores se voltam para ações que podemos adotar individualmente. Ele observa que, ainda que repensar como nos deslocamos pela cidade ou rever nossos hábitos de consumo possa parecer insignificante diante da gravidade do aquecimento global, mudanças feitas por escolhas podem ser mais fáceis do que a escassez imposta por um colapso climático.

Na última parte da HQ, o diálogo toma um rumo inesperado e chega à neurociência, e um novo interlocutor – o escritor Sébastien Bohler – surge para explicar como a evolução do cérebro humano nos levou a nos concentrar em recompensas rápidas e na sensação de prazer provocada pela dopamina. Para Jancovici, parte da relação irracional que as sociedades ocidentais mantêm com recursos naturais pode ser compreendida pela neurofisiologia e pelo individualismo. A possibilidade de evitar mais catástrofes, portanto, passa por novas formas de agir, pela construção de novos hábitos e pela adoção de modos de viver mais centrados na coletividade.

Sem alarmismos, mas com o intuito de conscientizar os leitores, O mundo sem fim apresenta uma grande quantidade de informações bem-organizadas na informalidade do diálogo. Em vários momentos nos identificamos com o desespero de Blain, pois observamos como incêndios florestais e ciclones começaram a se tornar mais frequentes nos noticiários. Sem ceder ao cinismo, podemos promover mudanças no dia a dia, e assim reivindicar alguma agência para contribuir com a redução das emissões de carbono. É claro que a ação individual é ínfima diante da complexidade da crise climática e precisa ser acompanhada de pressão política pela proteção ambiental. Entretanto, dada a urgência de adiar o fim do mundo, todos os gestos têm seu valor.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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