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A travessia das transições

Por Stephanie Borges

24 de setembro de 2023
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As memórias de Maia Kobabe em Gênero queer (Tinta da China, 2023, tradução de Clara Rellstab) seguem um fluxo não linear entre a infância, a adolescência e o início da vida profissional de Kobabe como quadrinista independente e professore de desenho. A HQ reúne momentos de sua trajetória que a fizeram compreender sua relação com o corpo, o gênero e a sexualidade, mas sem o intuito de organizar uma cronologia. De certa forma, as idas e vindas no tempo ajudam leitores a compreender o que Paul Preciado observa em Um apartamento em Urano – a transição é um processo, não um destino. A cada nova descoberta sobre si, Kobabe ressignifica algumas memórias, e algumas de suas alegrias e angústias passam a fazer sentido.

Embora os quadrinhos tenham uma inspiração autobiográfica, a narrativa é pontuada por sonhos e devaneios. Referências a música, moda e livros de fantasia são incorporadas às imagens, que retratam como Kobabe se vê ou se sente em alguns momentos. As cores, pintadas pela irmã de Maia Kobabe, a artista visual Phoebe Kobabe, vão de tons mais sóbrios nas cenas cotidianas até páginas multicoloridas cheias de elementos fantásticos e aspectos da vida queer.

Identificada como mulher ao nascer, Maia Kobabe cresceu numa família influenciada pela cultura hippie numa região rural da Califórnia. Por anos recebeu educação domiciliar e conviveu apenas com os filhos dos vizinhos, que também valorizavam uma vida próxima à natureza e sem muita preocupação em classificar as brincadeiras como de meninos ou meninas. Sua vida mudou ao começar a frequentar a escola, quando a falta de adequação ao que se entende por “naturalmente feminino” provocou situações constrangedoras, como ser repreendida pela professora por tomar banho de rio sem camiseta, um hábito jamais questionado por seus familiares e vizinhos.

O fato de a mãe de Kobabe ser uma mulher que não se preocupava com padrões de beleza ou em educar as filhas de acordo com o comportamento esperado para uma “mocinha” fez com que Maia muitas vezes se sentisse como se existissem segredos que não lhe foram revelados. No entanto, eram episódios em que um corpo que não se ajustava aos padrões estéticos ou a uma performance de heteronormatividade compulsória era interpelado para se adequar. Enquanto Maia só se interessava por livros, sua tia a aconselhava a se depilar e suas amigas queriam saber se ela era lésbica, já que não sentia atração pelos garotos do colégio.

Na adolescência, teve uma série de crushes platônicos por meninos e meninas andróginas, fantasias sexuais estimuladas por personagens de romances de fantasia e chegou a escrever fanfics. As dúvidas em relação ao sexo e à intimidade surgidas apenas por volta de seus 25 anos levaram Kobabe a uma breve experiência no Tinder e a um relacionamento que contribuiu para que se entendesse como assexual. Durante anos a hipótese de ser bissexual lhe pareceu válida, até que percebeu que seu interesse afetivo pelas pessoas não incluía o desejo sexual. O tesão e a disponibilidade emocional considerados normais em um namoro lhe pareciam desgastantes, uma vez que suas amizades supriam suas necessidades de carinho e companheirismo.

Kobabe menciona sua relutância em escrever sobre si e destaca que a única informação a seu respeito que gostava de compartilhar era sua lista de leituras. De certa forma, ter algo relevante que pudesse ser organizado e quantificado oferecia conforto em meio a tantas dúvidas em relação a seu gênero e orientação sexual. Ao conhecer outras pessoas dissidentes do binarismo de gênero, Kobabe passou a entender melhor suas necessidades e anseios. Esses encontros e conversas fazem parte de Gênero queer, pois essa convivência teve impacto em seu autoconhecimento, sem ignorar as diferenças e a diversidade dentro da comunidade queer.

Embora não tenha a pretensão de ser didática, a HQ pode contribuir para que cisgêneros, que se identificam com o gênero atribuído no nascimento, entendam a necessidade de uma linguagem mais inclusiva e a importância de perguntar às pessoas por quais pronomes querem ser tratadas. Os episódios em que Kobabe relata suas visitas ao ginecologista – cenas que tratam de dores e incômodos conhecidos também por mulheres cis – enfatiza como corpos dissidentes não são acolhidos quando precisam de tratamento médico, o que muitas vezes afasta essa população do cuidado preventivo.

Há conversas difíceis entre Kobabe e sua mãe e sua tia sobre não binariedade e misoginia. Se, por um lado, as feministas de sua família lhe permitiram crescer sem a necessidade de corresponder ao que se espera de uma menina-padrão, por outro, elas precisaram de tempo para compreender a identificação como queer. A opção pelos pronomes elu/delu envolve a busca por um modo de ser que não exija a adequação ao que a sociedade codificou como atributos masculinos ou femininos. No desfecho do livro, fica claro como a dinâmica familiar e as aulas para adolescentes estimularam a escrita das memórias, sobretudo a fim de que as experiências delu sejam úteis a outres jovens que se descubram queer.

Acompanhamos várias mudanças de Maia Kobabe em Gênero queer. Das mais perceptíveis, como cortes de cabelo e escolha de roupas confortáveis e acessórios glamurosos, até a descoberta dos fetiches que lhe dão prazer sozinhe e a decisão de não manter relacionamentos afetivos nem ter filhos.

É possível que algumas dessas escolhas não sejam definitivas ou que o sonho de uma mastectomia se realize, uma vez que a existência humana abarca inúmeras transformações. Contudo, a delicadeza dessas memórias está em retratar o autoconhecimento como um processo que se desenrola ao longo de décadas, entre inseguranças, experimentações e acolhimentos. Ao compartilhar sua história, e quadrinista oferece referências para que leitores ansioses compreendam que não estão sozinhes com suas ambivalências em relação ao próprio gênero e mostra como o respeito é o mínimo que se pede para que a sociedade seja menos violenta com pessoas trans.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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