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A celebração das mudanças

Por Stephanie Borges

30 de julho de 2023
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Alison Bechdel falou sobre suas relações familiares nas HQs Fun Home e Você é minha mãe?, e surpreendeu seu público ao anunciar um livro sobre sua relação com exercícios físicos. O tema parecia inusitado. Nas primeiras páginas de O segredo da força sobre-humana (Todavia, 2023, tradução de Carol Bensimon, a primeira HQ de Bechdel a usar uma paleta multicolorida, pintada por sua companheira, a artista Holly Rae Taylor), a autora-personagem comenta como, apesar de sua “cara de intelectual”, ela se considera uma pessoa vigorosa, que encontrou nas atividades físicas uma forma de compreender a relação entre o corpo e a mente.

Numa breve introdução, a cartunista propõe aos leitores uma viagem de volta aos anos 1960. Ao repassar a vida a partir de seu interesse por atividades físicas, ela relembra sua fascinação infantil por fisiculturistas, a descoberta da sensação de bem-estar depois de esquiar com a família e fazer caminhadas solitárias na adolescência. Com o passar dos anos, sua relação com o corpo vai ficando mais complexa, e temas como assédio, sexualidade, relacionamentos amorosos e saúde mental ganham relevância na narrativa.

Cada capítulo se concentra em uma década, até chegar aos anos 2010. Conforme Bechdel passa do caratê à ioga, troca a corrida pelo ciclismo, seus quadrinhos retratam mudanças culturais nos Estados Unidos — o sucesso de programas de aeróbica na tevê, a popularização das academias, atividades da moda como spinning e crossfit, a criação de um mercado de roupas e acessórios que compõem o estilo pessoal de Bechdel, como as jaquetas esportivas.

As memórias são revisitadas em paralelo à biografia de autores que também praticavam caminhada e escalada, como Gary Snyder e Samuel Coleridge. A influência de escritores transcendentalistas como Margaret Fuller, Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau fez Bechdel considerar as atividades físicas e a contemplação da natureza um modo de entrar em contato com a sensação de pertencimento e se conectar a tudo que existe. A leitura de Os vagabundos do Dharma (The Dharma Bums), de Jack Kerouac, despertou sua curiosidade pela meditação e pelo budismo.

Para Bechdel, as experiências com diferentes esportes nem sempre eram consequência da busca por transcendência, embora trouxessem algum autoconhecimento. Tanto que ela começou a treinar caratê graças aos debates sobre autodefesa no movimento feminista, enquanto o ciclismo de longa distância era um pretexto para manter um flerte…

Os efeitos dos exercícios em seu processo criativo também são evocados. A resistência física lhe permitia passar horas desenhando, e o hábito de prestar atenção ao desconforto aprendido na ioga se refletiu nos temas políticos das tirinhas Dykes to Watch Out For, publicadas ao longo de 25 anos e reunidas na antologia O essencial das perigosas sapatas.

A prática de esportes nem sempre foi sinônimo de saúde: Bechdel é franca ao nos falar dos períodos em que abusou do consumo de álcool e de remédios para dormir. Comenta sua experiência com a depressão, e reconhece que a doença se devia em parte à relutância em viver o luto pela morte do pai, só compreendida quando ela escreveu sobre ele.

Mais do que desafiar o corpo, entender a própria força também envolve o cuidado com as emoções e a saúde mental. Com a maturidade e o autoconhecimento, a autora se questiona sobre suas maiores dificuldades e percebe como as relações humanas lhe parecem extremamente desafiadoras. Entre períodos de celibato e isolamento, ela descobre que amizades e amores são complexos, transformadores.

Entrelaçando eventos históricos a tendências da moda esportiva e a seus relacionamentos amorosos e questões na análise, a cartunista observa como as mudanças políticas e climáticas afetam seu entorno e suas escolhas. A HQ evoca um ponto central – a sensação de que tudo está conectado. O livro propõe uma reflexão sobre a impermanência, pois Bechdel ressalta como a decisão de se permitir mudar de ideia e de atitude ao enfrentar seus traumas e problemas tornou sua vida mais leve.

Um dos trechos mais divertidos é quando Bechdel e Holly escalam o monte Matterhorn para refazer os passos de Jack Kerouac, e depois de muito esforço concordam em desistir. A libertação do sofrimento causado pelo ego pode ser alcançada com a opção de abandonar um projeto que não fazia mais sentido, ou pelo autoconhecimento de não forçar os próprios limites.

O caminho para a transcendência não é linear. Embora várias experiências possam despertar a sensação de dissolução do ego, o momento de fluxo é temporário, mas vale a pena tentar encontrá-lo outra vez. Ao final de sua viagem no tempo, Bechdel enfim se aproxima dos ensinamentos budistas sobre os quais refletiu durante anos e conclui que, se há algum segredo, é o de entender como apreciar o momento presente.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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