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A doce vingança do poeta que voava

Por Nina Rizzi

23 de abril de 2023
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Espáduas (Telaranha, 2023) é uma antologia do poeta, “artista elástico”, panificador e cantor de blues paranaense Rollo de Resende, e reúne sua produção poética anteriormente publicada nos livros Bem que se aviste racho de romã (1988), Homeopoética (1991, com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella), Água mineral (1995) e Uma flor de lótus (1998, póstumo), além de plaquetes, coletâneas, jornais e revistas. O livro tem organização do jornalista Hiago Rizzi e paratextos de Marilia Kubota e Francisco Mallmann, também poetas.

Em sua própria definição, apresentada na publicação de Água mineral, Rollo conta que nasceu “roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes. Artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes chamada Recreio e de catecismos. […] Por dois anos não passei nos vestibulares porque na hora da redação escrevia poesias. […] Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins […] Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias – fone 200.2021. Escritores preferidos. Walt Whitman, Elizabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mário Quintana e outros…”

O título da antologia vem do poema publicado originalmente em Água mineral: “alguém tocou-me uma das espáduas/ e deu-lhe este belo nome:/ asa”, e as asas vão se batendo e debatendo num sem-fim por todo o livro, assim como, ao que revela sua poesia, em sua vida. Isso porque Rollo de Resende é um poeta prosaico, sua poesia se faz de conversas, canções e imagens do cotidiano; essas imagens (ou colagens), contudo, aparecem de maneira insólita, invertendo a ordem do que seria uma fala comum, provocando torções nos versos que modificam nosso modo de pensar não só a vida comum e o olhar que deitamos sobre as coisas, mas o próprio fazer poético:

bem
que se aviste
onde pousa teu dedo
pássaro bicando
num
aplauso de asas

nem
uma pausa para gozo
na doce região
onde se adquirem as doenças
racho de romã

E, como o poeta prova, para escrever um poema prosaico, não se faz uma narrativa para quebrá-la em versos, nem mesmo se faz um arranjo com imagens bonitas, mas corriqueiras, e põe num vaso de cristal; é preciso mastigar, conviver, amar as palavras e então percebê-las como uma pintura, uma canção, um corpo pronto para ser amado, pois “sempre será tempo de se/ encantar com nomes:/ fósforo,/ paráclito,/ stella./ glória aos vocábulos,/ às mandíbulas/ e mais ainda/ ao que, escrito, anima como chama”.

O cotidiano de Rollo, contudo, não é feito de asas e palavras apenas, a mão da poesia é a mão de quem escreve, e este foi um homem que amava outros homens e amava ser livre e livre para amar. Essa lírica amorosa nos oferece poemas curtos que são como flechas direto ao alvo (“onde os olhos/ não veem/ os dedos penetram”), uma alegre ironia diante de encontros malfadados (“vos agradeceria com o que posso/ oferecer de mais íntimo e verdadeiro:/ meus versos e minhas fezes”), e ainda em poemas que de tão vulneráveis são um luzeiro e, por que não, uma oração, como no poema oferecido a Leonard Duck:

De noite fui recolher as roupas do varal
e disse:
— acho que estou apaixonado.
estou aprendendo a abraçar.
a lembrança de um particular abraço à tarde
e seu mormaço.
são dois homens diversos:
um deles cético,
outro parece em tudo crer.
“… um homem ao amar outro homem
pode vir a ficar de joelhos.”
e a lição:
este poema não precisaria existir;
mas como quer o encontro
do caçador e sua caça
na densa floresta da noite

Dizem que a vida não permite ensaios, mas não consigo acreditar nisso quando olho para a História, nossa própria história individual e coletiva (e literária), e sei que, como lembra Conceição Evaristo no poema “Vozes-mulheres”, nossas bisavós lamentavam, nossas avós desobedeciam, nossas mães se revoltavam baixinho, nós rimamos com sangue e fome, e é minha filha que canta a liberdade; quando vejo as pessoas mudando seus pensamentos, escritas e, portanto, o próprio modo de agir e estar no mundo.

Reescrever nossas histórias é como ensaiar no tempo nosso próprio devir, a vingança humana em poder, antes de findar, ser sempre outra pessoa enquanto deuses serão sempre deuses, imóveis e imutáveis. E se poesia é um modo de estruturar pensamentos, ela também é reescrita, se vinga num contínuo-devir.

Penso que muito do que poetas escrevem é um sempre dizer a mesma coisa, com palavras, formas, linguagens e modos diferentes – tanto que até parecem estar dizendo outras coisas, mas temos cá nossas obsessões: o corpo, a vida, a morte. Rollo de Resende, além desse movimento de dizer sem dizer a mesma coisa, refaz seu pensamento/poesia com os mesmos poemas, que mais que repetições são variações, como podemos conferir naqueles enfeixados no capítulo “a sublime deriva”, poemas dispersos publicados em antologias, jornais e plaquetes (penso que isso pode ser outro modo de nomear os zines) que ele vendia na Feira do Largo da Ordem, em Curitiba.

E, para um poeta que escreve sobre o cotidiano, é natural que sua vingança pela escrita zombe da ideia de decadência e morte que povoava o imaginário do final dos anos 1980 e início dos 1990 (e ainda hoje, infelizmente) sobre pessoas que convivem com HIV, como no longo “nunca irei escrever alguns poemas”: “tocou a mão amarrada/ e a mão se amarrou/ ficamos os dois de mãos dadas/ enquanto via os olhos perderem a órbita […]/ o doce relevo de seu sexo/ eu não pude deixar de desejá-lo/ mesmo as amarras o caninho/ os olhos indo e vindo/ a luz sinistra/ você estava desejável”; ou no poema publicado originalmente em Bem que se aviste racho de romã:

teu sexo
se batendo pelos
corredores do apartamento

por ti
solidamente
sapatos em chamas

até
trocarmos doenças

Faz sentido que o posfácio de Francisco Mallmann seja uma carta tão afetuosa para o poeta. É impossível não sentir uma imensa ternura lendo esse livro, olhando as fotografias do acervo de amigos e família que enriquecem o projeto gráfico e as próprias imagens que o poeta constrói. É como se tivéssemos amizade, da mesma maneira como ele parece ter amizade pela enfermeira que cuidou dele, a quem o último poema do livro é dedicado:

sutras, mudras, mantras
p/ maria da penha

no natal, ela compra
copos, xícaras e calcinhas
para o ano todo.
eu serei o seu soldado
ferido de guerra.
ela põe a mão em minha testa.
eu quero ser guardado
em sua concha.
eu sou a doença de uma
concha.
eu sou uma pérola.

Tenho vontade de abraçar Rollo e seus poemas, dizer: mano, que ensaio fod*! Tudo foi um espetáculo, sua vingança é doce e ecoa aqui. Tenho vontade de fazer de seu livro, seu corpo, uma “falsa ikebana” – como esses pássaros que você fazia com pétalas de flor – e jogá-lo no céu, e te dizer ainda: voa, canta, um blues, por favor!

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

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