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Poesia com raiva, hormônio e ternura

Por Nina Rizzi

26 de março de 2023
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Meu corpo é um mapa de desobediência civil (Lola Frita, 2022) é o segundo livro de Gal Freire, poeta e bailarina maranhense que hoje vive em Curitiba, depois de alguns anos em Santa Catarina, onde estudou teatro e balé, tendo chegado a integrar o Teatro Bolshoi do Brasil.

Logo no poema de abertura “brasil-tesão”, somos apresentadas às personas que compõem o livro: travestis e mulheres transexuais que rompem suas imagens estereotipadas: “são máquinas de matar/ máquinas de seduzir/ cadelas intelectuais escrevendo”.

O livro surgiu de sua performance Barbie Precipício (hoje Efeito Barbie), em que a “baby poeta, bailarina que escreve” (em sua autodefinição) se traveste de Boneca Barbie para questionar diversas imagens de controle. Nessa performance, nos deixamos seduzir pela imagem de uma Barbie em constante queda e contorção e, ainda que pareça doer, o olho teima em olhar, como acontece quando não queremos ver um corpo violentado, mas o olho teima porque não podemos deixar de olhar, como um espelho de nossas próprias dores. Esse movimento mimetiza a condição de travestis e mulheres trans: sedução e violência, como a própria artista assevera nas primeiras linhas de “Manifesto Transex 2020”: “Falo diretamente do país que mais mata pessoas como eu e o que mais consome pornografias protagonizadas por nós”. 

Se por um lado parece impossível dissociar sua produção poética de suas performances em progresso, por outro a escrita se sustenta de pé e abre trilhas imagéticas de que só a leitura é capaz. Faz sentido então que o manifesto feche o volume, quando nos poemas, de maneira análoga à sua performance, a intertextualidade se assume como uma intrasexualidade ou uma pós-sexualidade, que rompe uma tradição de dominação e submissão assumindo um gênero (também na corporeidade do texto) desviante, contranormatizado e contracolonial, como em “like a violent star threatening the night”:

eu não sou minha ferida
mas pra você eu sou,
aquenda:
o que sobra pra travesti
depois da cirurgia?

se os homens que até aqui chegaram
não me desejaram apenas
como mulher
mas também como ameaça

não me desejaram
somente feminina
mas também
radicalmente feroz
fálica e decadente

e empoderada
no fundo do buraco
colonial

Ou como nos versos finais de “animal tenderness”: “você se parece com uma mulher/ mas tem a doçura de uma/ égua de sangue quente”, um devir que se livra da ideia de ser mulher, como já se livrou da ideia de homem — inclusive da masculinidade controladora da família: “quando lembrarem de mim […] dirão que fui meu maior projeto/ mas jamais me nomearão/ esposa de homem algum”.

Essa dobra na expectativa não se apresenta apenas na negação de estereótipos e do controle sobre seu corpo, mas também na sua celebração, como em “hormônio em gel”: “quatro jatadas são suficientes/ para macular o corpo/ com esse unguento alcoólico […] gozando em mim/ e eu gosto”, ou em “oração”:

senhor, enche meu corpo
de poesia

e assim, a noite deságua
no quarto
inunda minha cama de
deus e androginia

Essa corporeidade estética que se trans-forma no texto, além de furiosa, tem humor – como no poema “chá de revelação”, que brinca com a linguagem neutra e a neutralidade do próprio gênero: “se for menine/ vai se chamar Menine,/ mas se for menine/ vai se chamar Menine”; e também com a doçura “de quem escreve a punho/ uma carta/ de amor”.

Li este livro algumas vezes, uma delas em voz alta para minha filha de 16 anos, que comentou: “ela é sentimental, né?”. É mesmo. Sua poesia, sua arte, é feita com gana, honestidade e muito, muito sentimento. De tal maneira que ficamos assim “emocionadas” (que chatice ser blasé, bom mesmo é ter afeto e se afetar), com vontade de abraçar e conviver longamente com cada um de seus poemas – abrindo uma via ética em nossos próprios corpos: abraçar e conviver longamente com cada uma das pessoas como Gal Freire, e compartilhar essa terceira margem (e tantas mais) que são todas as vidas.

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

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