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Redemoinhos da mulher preta: uma lança para o futuro-agora

Por Nina Rizzi

19 de outubro de 2023
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Existem obras que não dizem muito sobre quem são seus autores na vida privada ou mesmo pública, seus poemas não parecem ter um destinatário ou mesmo um porquê dentro do mundo comum, se abrindo então para uma realidade sensível.

E há também poetas que, mesmo criando realidades sensíveis, materializando no texto o que não existe fora dele, estão aqui e agora neste mundo, são artistas de nossa época, fazendo de suas histórias individuais uma história coletiva, porque afinal, como lembra Conceição Evaristo: “Se existe uma literatura universal – uma literatura capaz de convocar a humanidade do outro, em vez de expulsá-la –, essa literatura só pode ser concebida, empreendida e ambientada na base da pirâmide social, onde estão as mulheres negras”.

É o caso de Elizandra Souza, que além de poeta é jornalista, editora e agitadora cultural. Em seu quarto livro, Quem pode acalmar esse redemoinho de ser mulher preta? (Mjiba, 2021), há até mesmo uma seção “awon iriri – meu ebó ao mundo”, com uma linha do tempo que se inicia no ano 2000, com suas vivências com literatura, jornalismo cultural e educação, alinhando assim seu projeto poético a sua prática militante.

Em edição bilíngue, com tradução de Luana Reis para o inglês, o livro tem cinco sessões, cada uma com dez poemas que reverenciam a orixalidade, suas raízes, lutas e amores, ofertados como orikis (evocação por meio da poesia, a partir do sentido de Oriki, sendo ori origem, e ki saudação; portanto, um oriki evoca nossas origens, que, simbolicamente, residem em nossa cabeça), trazendo para junto do livro-gira suas ancestrais, nós que aqui estamos em ato de leitura-partilha e ainda as pessoas que virão, formando um livro que é filosofia africana diaspórica em forma de poesia.

A primeira seção é “Asè”. Axé é a própria energia sagrada dos orixás, só há vida se há axé, assim carregamos também essa energia divina e força vital de realização e transformação. Elizandra, como boa filha Oyá, materializa o cuidado com seu axé, ofertando honras aos orixás e através da ancestralidade:

Balão de festa
Eu que nasci como um zigue-zague
E me tornei redemoinho
Sou aglomeração de muitas
dentro de um balão de festa.

Na segunda seção, “Ori”, a poeta escreve sobre sentimentos que convivem entre cabeça e coração, que, numa perspectiva filosófica africana, são elementos únicos e não díspares. Pensamento, reflexões e debates filosóficos estão no coração, que é nosso elemento mais vital. É sentindo e ouvindo o coração que aprendemos quem somos, o que fazemos aqui e como conduziremos nossos passos.

A terceira seção, “Ifé”, é composta de poemas de amor. Não aquele amor do tipo “alma gêmea”, em que as relações são como posse e acabam se traduzindo em violência e feminicídio. O amor aqui tem uma dimensão espiritual que nos guia para o bem, ajudando a nos conectar com nossa ancestralidade e comunidade; é uma escolha de partilhar a vida. Amar é colaborar em intimidade; intimidade é partilhar uma canção que nos convida a compartilhar a vida de forma irresistível.

Da mesma maneira, na quarta seção, “Oyin”, dedicada a poemas eróticos, esse sentido do amor é reforçado, num entendimento de que a vida nos impõe a vontade de amar – amamos porque vivemos.

Banana da terra
Colhida do cacho
Bem madurinha e potente
Só desnudo a casca
Depois de cozida
Seguro firme entre os dedos
Passo bem vagarosamente
Manteiga por todo o comprimento
Acendo o fogo da frigideira
E deixo dourar quase queimar
Ponho em uma cumbuca
Mas você não espera
Coloca a mão nas minhas pernas
Enquanto eu preparo o almoço
A sintonia das nossas chamas
Provoca combustão e trovoada
A nossa mesa é bem farta
Se nos alimentamos um do outro
E a banana que vem da terra
É a mesma que me afaga

Na última seção “Iyka”, os poemas clamam por proteção e gritam por luta, como lança-chamas para o levante e honras a demais poetas e intelectuais que, como Elizandra, se insurgem no mundo poético da mesma maneira que na vida: Sueli Carneiro, Sérgio Vaz, Nelson Mandela e Christen Smith:

Mulheres-redemoinhos
Quando uma mulher vai para a batalha
É preciso apreciar
Ntanda, dona dos seus próprios fenômenos,
Começa seus ventos em torno de si
Espiral nos dias quentes
Muitas vezes gira só…
Na rapidez de um raio que tudo transforma,
Ela ciranda seus sonhos
Tem o seu próprio redemoinho
E convoca as mulheres negras para juntas girar

Assim a poeta se inscreve na literatura pensando a existência negra em diáspora como uma lança para o futuro. Uma posição ético-estética definida que não nos deixa esquecer: a história do povo negro não é uma história de correntes, mas de aquilombamento, e é nossa raiz e matriz cultural que nos permitiu chegar até aqui em conexão com o próprio sentido de vida. E é no aquilombamento, na sabedoria e partilha dos saberes que nos reconhecemos e reconhecemos as demais pessoas. Somos comunidade e coração.

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

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