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Uma amazônida na praça

Por Nina Rizzi

10 de setembro de 2023
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Uma imagem me é recorrente quando penso na poesia contemporânea: numa praça, uma caixa de som emite uma voz que se mistura ao burburinho das pessoas que passam. Há aquelas sentadas num falso silêncio, as que brincam, as que namoram. Sempre há alguém que ri, alguém que chora. Ouvir a caixa é prestar atenção a essas tantas vozes que, a despeito de serem individuais, reverberam coletivamente.

Então imagens também são sons. Dizer, por exemplo, “uma rede estendida no sereno” é uma imagem e é ainda algo além da cena, um som que se abre nessa praça onde estamos – passantes, olhos-ouvidos de quem lê.

Antonia Nayane bota seu livro na praça dizendo a cada passante com uma ternura que me esquenta até os ossos: Abraço sua crina (Impressões de Minas, 2023). É bonito isso, ser o cavalo que a poeta afaga mais que cavalga. Leio esse título e ouço: é comigo. Passo a mão nas minhas crinas e continuo a ouvir.

dentro do meu quarto
um cavalo vela meu sono
sempre que rompe a imobilidade
e o chão flutua a impermanência
                         abraço sua crina
como se fosse o cabelo de novos tempos.

E não é apenas de um quarto que se projeta na praça ou de uma voz única que nos fala a poeta. Existem muitos jeitos de dizer as coisas. As palavras sobram, soçobram, num jeito mar de levar caldo, submergir, afogar, até subir de novo, flutuar e ser rio. Mas não só.

São tantos os lugares e tanta a gente que emerge desse livro, correndo todas um vau de rio amazônico-paraense, atropelando prédios mineiros, cortando e contando tudo por meio de pequenos troncos-poemas que se juntam em pororoca num encontro de cal, rio e mar.

Ouvimos o sotaque ao ler “visagens”, “ramo”, “mururés”, “maka’xera”, “mundiado”, com um acento que só uma boca fendida pela poesia poderia dizer.

ramal de fissuras que desemboca
no guamá de minhas sílabas
rio fanho a dizer-me funduras
                       piaba é toda poeta.

E, se são muitas as gentes e vozes a abraçar minha crina, experimento ainda uma aventura diferente nessa leitura: não sou apenas eu que leio, sinto uma terra, uma água de mim se alargando, lendo para quem amo “o sim é um cio”, como se pudesse ler com esses olhos de quem amo, como se outra pessoa eu fosse, inventando em parte este livro, ouvindo e escrevendo do próprio punho e peito: sim meu visse um viço. Sou também muitas as gentes.

Esse livro é daqueles que nos dão vontade de compartilhar na praça. Como a farinha d’água estalando palavras na boca, patinhas de caranguejo apatolando a lama, águas que correm pelos veios das crias.

Compartilhar equivale aqui a ser barqueiro no livro-barco onde Antonia poeta purinha nos dá essas moedas de ouro que são seus poemas – memória, sonho, saudade e alguma promessa – descobrir nas palavras a poesia:

                                              corpo
                                              navio
                                            embaixo
                                             calado
                                             navega
                                              o cio.

E conto essas descobertas como a parte submersa das embarcações: o calado. Talvez o nome da menor embarcação do mundo seja poema, assim como calado é outro jeito de dizer submerso, como fundeado é outro jeito de dizer ancorado, como compartilhar essa leitura também é outro jeito de dizer algo que espera – unhar. Unhar esse lugar aqui poema onde tem um amor calado, outro jeito de dizer recifes submersos. Até reler, e poder ser junto uma praça, outro jeito de dizer tanta coisa, tanta ternura, e ainda sem parar:

um tronco de árvore tombada à ribeira de mim
uma ilha flutuando em minha boca
respostas que não me deste sobre tua noite mundiado
em que flecha                        te botou na rede
                             arriado

e só a lua e os bichos te baforavam
no breu pretinho da mata
caruanas te queriam fundo.

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

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