Buscar
0

Poesia amefricana de erva e mangue

Por Nina Rizzi

21 de maio de 2023
Compartilhar

Conjuro da Guiné é a primeira obra da escritora, ensaísta, professora e militante porto-riquenha Mayra Santos-Febres, publicada em 1991 (a autora tinha 19 anos) com o título Anamú y Manigua. Selecionado como um dos melhores livros do ano em Porto Rico, saiu no Brasil em 2021, com tradução — finalista do Jabuti de 2022 — de Mariangela Andrade para o Selo Orisun Oro, Escola de Poesia.

Para quem nasceu e cresceu numa sociedade construída sob a ideologia da branquitude, manifestada também na criação de cânones literários, pode parecer bem difícil se deslocar do pensamento ocidental ao ler e interpretar e, consequentemente, escrever textos literários.

Mayra Santos-Febres nos convida a fazer esse exercício. Sua poesia, com emoções e subjetividades inscritas no corpo desde seu lugar como mulher amefricana (conceito de Lélia González, que pensa a experiência comum de pessoas negras na diáspora nas Américas, bem como de pessoas indígenas), se escreve no corpo do texto fora do discurso dominante no que diz e em como diz – ainda que para escrever seja necessária uma língua colonial (“minhas mães, onde está essa ilha e como se pergunta por ela na língua original?”), trabalhada aqui com riqueza de anáforas e quiasmas, aliterações e elipses num ritmo-lundu que batuca como imãs, e não rimas.

O livro é dividido em duas seções: “Conjuro da Guiné” e “Conjuro de Mangue”. Na primeira, Santos-Febres conversa com a avó. O vocativo se dirige a uma destinatária que não é apenas a sua avó, mas todas as “ancestras” (termo da autora) da ilha e de toda a África e sua diáspora, como podemos perceber logo no primeiro poema:


Sai para dar clemência ao universo 
Ao seu lado
Coagula toda neblina
Em paralela negritude:
Minha vó
Nômada, reordena o caos 
de todas as manhãs
Quando ainda não borbulham
Suas deliberadas tetas opíparas
De querer agarrar o escândalo
E virá-lo folhas secas para varrer.


Além da avó, sua mãe aparece nessa primeira seção. Mulher negra e trabalhadora pobre num mundo racista e classista, ela faz um elo com o tempo presente e seu território (“a ilha com sua dominação esparramada”), enquanto a avó está num tempo-outro que não é exatamente o passado, mas uma origem-futuro, assumindo nos poemas uma personagem-coletiva que representa sua ancestralidade e poder.

A poeta se mira no espelho de Oxum e, ao enxergar a avó em sua individualidade, sente-a reverberar coletivamente em todas as outras, até que seja também ela própria a avó. Essa operação erótica alcança uma sabedoria ancestral e nos faz lembrar Audre Lorde em “Usos do erótico: o erótico como poder” (em Irmã Outsider), ao argumentar que, confinado no quarto de um homem, o erótico foi esvaziado de seu real sentido de entrega, alegria, plenitude e força transgressora das mulheres. Para Lorde, abraçar o erótico é se rebelar contra o autoaniquilamento, pois “o erótico é uma afirmação da força vital das mulheres; daquela energia criativa fortalecida, cujo conhecimento e cuja aplicação agora reivindicamos em nossa linguagem, nossa história, nossa dança, nossos amores, nosso trabalho, nossas vidas […] nosso conhecimento nos empodera”.

Ao evocar sua avó, a poeta a conjura aqui e agora, encontrando o sumo das plantas que, mais do que curar, libertam. Porque — ainda cito Audre Lorde — “não existe, para mim, nenhuma diferença entre escrever um bom poema e caminhar sob o sol junto ao corpo de uma mulher que eu amo”. 

Essa conjura-libertadora ocorre num dos poemas mais poderosos e que mais se desviam do pensamento ocidental:


Fica comigo hoje vó
vem
dorme comigo e sê minha amante.
deixa que eu me dependure
de tuas preciosas tetas do prodígio
de tua boca plana;
vamos enfiar os dedos na elipse
até chegar ao canto
bufar
e recuperar os sucos proibidos
os últimos, os mais saborosos.
vem
cavalga-me, vó.
eu te levo até à margem pulsante
eu transfiro a tua surdez
às agulhas explosivas
aos ouvidos que dinamitaremos
com os dedos no sangue da outra.
me dá tua língua e teu púbis
tuas zonas mais tuas
mete-te vó dentro de mim
dentro destas galerias escuras
aflitas
que balbuciam o teu nome.


Já em “Conjuro do Mangue”, a Santos-Febre transita pelo “grande arquivo” que é a memória das porto-riquenhas. São pretas, prostitutas, bêbadas, guerrilheiras encarceradas, estudantes grevistas, camponesas, quilombolas, costureiras. 

Se a linguagem é também um espelho de si e do território, como essas mulheres se refletem? Ao abrir o arquivo, trazer seus corpos ao corpo do poema, a autora lhes garante uma sobrevida digna, sem contudo esquecer que “o corpo da mulher é o experimento”, sobretudo quando se trata de corpos racializados, como diz num ensaio em seu livro Sobre piel y papel.

Os corpos-poemas são longos, em alguns o ritmo da respiração se aproxima da prosa. Guiada pela “erva-moura”, Santos-Febre questiona, “com raiva necessária”, ironia e profundidade formal o arquivo assassino da polícia e seu Estado, como nos dois poemas abaixo:


              a anjelamaría dávila
              poeta porto-riquenha

Instalada 
no canto mais voraz dos espelhos
a cantora
sem rebolar
sacode o esterno             brilha de purpurina
e cintila até cegar
policiais. 

*

            a Adolfina Villanueva, resgatadora de sua porção de terra na mediania, loíza, morta por guardas contratados em 6 de febrero de 1980.


I
se maçaranduba a lua
pelas imensas cidades da tua cintura
que sempre deságua em baías
no meio de tuas costas
surpreendida por uma espingarda
adolfina 
te arrasta até o mar
para pescar o melhor peixe do teu sangue.


Ao marcar um passado recente que muita gente gostaria de apagar, “deixar o abacaxi para os netos”, a poeta nos lança para o futuro, com o orí forte como nossas “ancestras”, lá “onde ocorres mais longe de ti mesma/ lá onde és” uma “canção abraço e fogo”, e são “as ervas, a única coisa possível”.

Entrar nesse mangue de guiné e poesia é conjurar um tempo imemorial, quando o calor do chão que entra pelos pés e vai subindo até os cabelos revela que “tá bonito pra chover”; quando as ranhuras da terra convidam o fogo a contar histórias; quando os movimentos do vento, da lua e das marés assinalam a hora da fertilidade – ler essa poesia é penetrar e perpetuar esse tempo fértil e imemorial, agora.

E sim, para nós que conhecemos a poesia desde dentro, desde a cor da madrugada, desde a escuridão mais bonita, “a palavra liberta”.

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

Livros relacionados


Outros textos do autor

Redemoinhos da mulher preta: uma lança para o futuro-agora

19 de outubro de 2023
Ver mais

Poesia bicho, luciferina

1 de outubro de 2023
Ver mais

Uma amazônida na praça

10 de setembro de 2023
Ver mais

A poesia dúctil de Diane di Prima

13 de agosto de 2023
Ver mais

Ninguém quis ver, então pixamos

16 de julho de 2023
Ver mais

Inventar a mãe e a mão que escreve

18 de junho de 2023
Ver mais

A doce vingança do poeta que voava

23 de abril de 2023
Ver mais

Poesia com raiva, hormônio e ternura

26 de março de 2023
Ver mais

Poesia de carne, linguagem, terra e água

26 de fevereiro de 2023
Ver mais