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Poesia bicho, luciferina

Por Nina Rizzi

1 de outubro de 2023
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Leio e releio felina abissal (nosotros editorial, 2020), um livro de quinze páginas com poemas de Janaú, ilustrado por Raísa Curty. É curto? Pode parecer, mas em cada página virada cabe tanta coisa, são tantas as emoções e reflexões que ele provoca que mais de uma vez lembro que um poema é um pensamento tornado ação, uma teoria condensada.

Penso na linguagem antes de mais nada. É interessante como cada poeta escolhe dizer, por exemplo, “vamos fazer amor”, sem o dizer exatamente, frontalmente, naquele ser sem estar sendo que se abre num sem-fim de significados.

Janaú, entendo num entender que passa muito mais pelos sentidos que pela razão, tem uma linguagem apurada no mato, desde as ervinhas mais rasteiras que brotam no cimento das calçadas da cidade grande, passando por matas altas do “mêi do mundo”, até o mato que cresce na beira de um rio em Afuá, lá na pontinha de Marajó. Letras como a Y agregadora indígena, termos como gatografia, felina d’água, rasga-ventre… palavras que inauguram, e reencontram, uma eu-lírica-bicho, em poemas assim:

tua língua na minha
áspera
raspando a pele
fina do lábio
dos lábios
ronronando
canções líquidas

sou Onça
que naufraga
as patas
em ancas
pintadas
cheiro a Jaguatirica
de perto
seu sangue quente
habita minha língua
falamos em Jaguar
inauguramos idiomas
um
lexicat

Um entendimento pela via dos sentidos porque a poesia não quer que a gente a entenda como uma operação matemática, os poemas estão ali, como que surgindo em nossas mãos, coisas bonitas (e, sim, às vezes feias) que pegamos – uma flor, uma macaxeira, uma nesga de sol, um e dois seios.

Se Natalie Diaz em seu Poema de amor pós-colonial é a própria água – “Carrego um rio. É o que sou: Aha Makav. Isso não é uma metáfora”, em Janaú os poemas são bichos que também são ela mesma: não é metáfora. Quando inscreve na página, junto do tecido animal criado por Raísa Curty, “eu pantera/ você jaguar”, sei sentindo que, sim: trata-se de uma pantera, verdadeiramente.

Como uma pessoa indígena, ou melhor, “mestiza de pai branco e mãe marajowara”, Janaú, ao voltar às origens maternas, de encantaria do fundo, só pode ser bicho, desde seu nome, herança de tataravô e bisavó, presente nas pajelanças e no tambor de Mina e, segundo o dicionário online de português: “Janaú, (Pará) Animal encantado que anda em bando pelas florestas, embriagando as vítimas com seu fartum para em seguida devorá-las”.

Assim, retomar suas origens é não só lutar contra um apagamento sistemático, mas provocar um alagamento de sentidos, voltar a ser bicho numa forma de lidar com a linguagem enquanto sistema de comunicação, mas sobretudo de estar no mundo e em comunidade.

Como vive no texto um bicho? Emergindo como corpo que ama, e ama sendo selvagem e selva, luciferina:

do latim lucifer, “que ilumina”; é uma classe de pigmentos que gera luz em alguns animais, fungos e algas, como por exemplo os vaga-lumes. nos reinos abissais é quem ilumina as felinas!

E nessa leitura que se quer repetida, só podemos ir nos tornando também esses seres tão amáveis, meio bichos, meio poesia, meio rio, toda terra. Terra indígena.

© Lavínia Lopes

Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.

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