Histórias do agora (para serem lidas agora)
Por Gustavo Pacheco
4 de junho de 2023
Narrar o presente é um empreendimento arriscado. Toda ficção que se debruça sobre questões contemporâneas está sujeita a armadilhas como a tentação do didatismo, a falta de consistência analítica e, sobretudo, a rápida obsolescência – como garantir que uma história sobre o ChatGPT, digamos, não soará datada em pouco tempo? E, no entanto, a ficção é desde sempre uma das vias privilegiadas que o ser humano tem usado para dar conta de realidades que ainda não entende, ou só entende de forma parcial e fragmentária. Não foi por outra razão que Ezra Pound chamou os artistas de “as antenas da raça”.
Em O inconsciente corporativo e outros contos (DBA, 2023), Vinicius Portella decide correr esses riscos, e que bom que ele escolheu esse caminho. Eu não sei vocês, mas cada vez mais prefiro ler autores que correm riscos a gente que escreve “bem” mas que, no frigir dos ovos, nunca ousa ultrapassar as fronteiras dos temas conhecidos, das formas e fórmulas conhecidas, do “bom gosto” etc. É bem verdade que quem se arrisca às vezes quebra a cara, fazer o quê, mas me parece um preço razoável a pagar pela chance de o leitor ser surpreendido e até assombrado.
As nove histórias do livro variam no tamanho (de duas até 39 páginas), no foco narrativo (da primeira pessoa informalíssima à terceira pessoa fria e delirante), no espaço em que se desenrolam (de um aeroporto na Guatemala a um laboratório na Suíça), e também no grau em que conseguem estar à altura da própria ambição – algumas são primorosas, como “Domínio de Melchizedek”, “Pedro Gustavo, autor de Ficções” e o conto que dá título ao livro, enquanto outras, como “Concentração” e “O Sr. Denner Voltasso não entende”, parecem não ir muito além de exercícios de estilo. Mas todas as narrativas têm o bem-vindo atrevimento de explorar como as relações humanas estão sendo decisivamente transformadas pelas redes sociais, pelos aplicativos de relacionamentos, pelas criptomoedas, pela inteligência artificial e por outras tecnologias contemporâneas.
Embora fique evidente em cada história o esforço do autor em investigar e tentar entender o impacto social e humano dessas tecnologias, essa exploração é feita com o coração mais do que com a cabeça; o livro não levanta teses nem tem a pretensão de explicar nada, “apenas” parte de situações tanto reais como hipotéticas para desenvolver narrativas que às vezes nos fazem rir, às vezes nos perturbam, mas nunca nos deixam indiferentes.
Isso já seria suficiente para dar unidade ao livro e fazer com que os contos tenham mais força em conjunto do que se considerados isoladamente. Mas há outro fio condutor que atravessa O inconsciente corporativo e outros contos e torna-o duplamente interessante: a representação de várias encarnações da masculinidade falida e combalida do nosso tempo. Os personagens masculinos do livro compõem uma galeria impagável de figuras tristemente reconhecíveis, do esquerdomacho inseguro ao Incel com pitadas de psicopatia. São personagens complexos e bem-construídos, não tipos ideais – e talvez justamente por isso seja difícil terminar o livro sem a sensação de que, como diz um deles, “homem é de fato um bicho muito imbecil”.
Eu não sei se as histórias de Vinicius Portella soarão datadas daqui a alguns anos, mas, para falar a verdade, quem está preocupado com isso? São histórias que falam do agora e merecem ser lidas agora, e isso é o que importa.
Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.